sábado, 17 de outubro de 2009

CASAL PERFEITO

Num dia de muito calor

alguém pede ajuda e Silva
vai ter que meter a colher...

Quando faz muito calor no resto do mundo, aqui em Brás de Pina faz um pouco mais. Era um dia desses, sol inclemente apesar da hora avançada. Por uma imperativa urgência saí de casa direto para o forno. Andava pelas sombras, sob as marquises, atrás de postes, em direção ao bar do Xará, quadra e meia do meu apartamento, em busca de notícias com o Fino, o garçom, e claro de algumas caipirinhas de lima. Mais tarde ia me encontrar com Mariluce, que se preparava para o ensaio da escola de samba. Isso eu não podia perder, mas quase.

De dentro de uma pequena loja, mais à sombra ainda, ouvi: “Ei moço, moço!” Olhei instintivamente e vi uma mulher, parcialmente oculta atrás de uma pilastra. Ela fazia sinais, me chamando com a mão e confirmando com a cabeça. Estranhei, resisti, pensei em seguir em frente, mas ela pronunciou um “por favor” angustiado. Entrei. No fundo, uma outra mulher, a dona da lojinha, confirmou com um gesto, diante do olhar interrogativo da primeira. Afastou-se. Aquela que me chamou, aparentava uns quarenta anos, bem constituída, cabelos longos, um pouco até demais, axilas que prometiam, um jeito assustado e o olhar baço. “Olha moço, me desculpe, mas eu preciso falar com você e ninguém pode ver”. Encostei-me no balcão e aguardei a bomba. “Minha amiga me disse que você pode me ajudar e pelo amor de Deus, me ajuda”. “Minha senhora, sua amiga se enganou, eu não ajudo ninguém. Mal consigo ajudar a mim mesmo”. Tentei me livrar, mas ela me ignorou: “É meu marido, moço. Não agüento mais. Quase todo dia ele chega da rua e me bate. Eu sei que ele tá desempregado, que eu é que boto dinheiro em casa”, fez uma pausa e acrescentou para não pairar dúvida. “Eu lavo e faço salgadinhos por encomenda. Mas não agüento mais”. Puxou a blusa e mostrou as costelas cheias de hematomas. “Ele só não bate na cara”. “A senhora já foi à delegacia aqui do bairro, a 38ª?” “Nossa senhora, nem pensar, ele me mata. Pra ele tanto faz ser preso ou não...”. “Ele bebe, chega bêbado?” “Às vezes, e aí é pior. Hoje levei nossa filha pra casa do meu pai, lá no Encantado, e nem sei como vou voltar pra minha casa”. “E a senhora mora aqui no bairro?”. “Moro ali na rua Tiboim, numa casinha que meu pai construiu quando a gente casou”. “Ele é chegado aí no pessoal do morro?” Continuei interrogando. “Não moço, ele era trabalhador, quando conheci entregava o gás no caminhão. Aí o pessoal do morro proibiu e ele perdeu o emprego. Mas não é bandido não.”

Bom, lá se vai a caipirinha, o bar, as novidades do Fino e a Mariluce. Às vezes aquela vontade de ir para o interior, comprar um barco e ficar fiscalizando a maré bate forte. Enquanto pensava essas coisas a dona Marta, alguma hora ela me disse o nome, chorava nos braços da amiga, lágrimas muito convincentes. “Muito bem”, disse finalmente, “vamos dar um jeito nisso. O que a senhora quer? Assustar, amansar ou despachar?”. “Pelo amor de Deus moço, só quero ser bem tratada”. Fez uma pausa, fungou sentida e completou num soluço: “Eu amo ele”. Meu Deus do céu, como é que pode, pensei, mas não sou eu quem vai consertar o mundo. “A que horas ele chega em casa?”. “Já deve tá chegando e hoje eu estou perdida, não vai encontrar nem a filha, nem eu”. “Então me dá o endereço, vai pra casa, que eu vou indo logo atrás, enquanto penso em alguma coisa”.

Tava na cara, que era trabalho mais para um psicólogo do que para um ex-policial, que agora cismaram de chamar de detetive. Dei uma frente a ela e fui, ainda, procurando as sombras. Pensei em dar um pulo em casa e apanhar minha arma, mas além de me atrasar seria desnecessário, pelo menos esperava que fosse. De longe vi quando Marta entrou em casa. Do portãozinho já ouvia vozes alteradas. Estavam no preâmbulo. Bati palmas. Mais forte. Nada. Passei o portão e bati na porta, antes que fosse tarde demais. A porta foi aberta com violência. O sujeito não era grande, mas era compacto. Os olhos injetados de ódio, não escondiam a autocomiseração. Diante de mim estava um homem em processo de destruição social, que, inconscientemente cavava mais ainda o buraco com as próprias mãos. “O que é?” Gritou ele pra mim, um desconhecido à sua porta. “Boa tarde, amigo”, tentei acalmar as coisas, “estou procurando gente para um trabalho e me indicaram você”. Foi o que me ocorreu dizer, na hora. O olhar dele passou de ódio para uma enorme desconfiança. A testa virou um display onde se podia ler: “É caô, é polícia, é bandido, é um assalto...” Antes que ele passasse para alguma atitude infeliz, acrescentei: “Me disseram que você está desempregado e procurando trabalho...” Ainda desconfiado, perguntou: “Qual é o trabalho?”. “Vamos conversar”. Ganhei tampo. Ele hesitou por um momento e então gritou para dentro de casa, em tom de ameaça: “Eu já volto”.

Caminhamos em silêncio. O sol já baixara, mas o calor emanava do asfalto. Procurava um bar onde pudéssemos conversar sossegados. “Eu te conheço”. Disse o cara, sem olhar pra mim. E continuou: “Você não tem trabalho porra nenhuma, ta é pegando a Marta, aquela vagabunda”. Fiquei sinceramente surpreso. Parou e me encarou: “Qual é a sua?” A atitude era agressiva. Estávamos ao lado de um poste e num rápido exame vi que a rua era pouco movimentada. Empurrei-o contra o poste, mas não consegui desviar do soco que pegou atrás da orelha esquerda, provocando um zumbido forte. O sujeito não tinha técnica, nem método, mas era ágil e forte. O segundo soco bloqueei, e soquei seu estômago com toda minha força. Ele dobrou o corpo e peguei a ponta do queixo. Amparei o corpo pesado num abraço e o arrastei, como um bêbado em pré-coma alcoólico pelos quase cem metros até sua casa.

Marta nos recebeu com gritos e desaforos. Joguei o cara no sofá e tive muito mais trabalho para acalmar a mulher, que tentava me agredir, achando que eu havia matado o maridinho. Uma cena lamentável.

Aos poucos, beijado e acariciado pela mulher, ele foi voltando à vida. Atordoado, o queixo roxo e inchado, o valentão parecia um menino malcriado nos braços da mãe. Antes que ele se reanimasse de uma vez, fiz meu discurso: “Eu não tenho nada com a vida de vocês e normalmente não me meto em briga de casal. Mas também não gosto de homem que bate em mulher. Por isso nós vamos, os três, para a delegacia e a Marta vai fazer um exame de corpo de delito”. “Precisa não moço, ele não vai fazer mais isso, não. Né bem? O senhor pode deixar”. Marta chorava e alisava a cara do marido, cada vez mais infantilizado e carente.

Levantei, fiz pose de justiceiro, apontei o dedo para o cara e falei sério: “Vou ficar de olho em você. Trata bem essa mulher que você nem merece, e vê se arruma um emprego”. Dei meia volta e saí.

Naquela noite acompanhei Mariluce no ensaio e a reverenciei como um súdito.

Isso é tudo pessoal...

Um comentário:

Anônimo disse...

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