Um caso de chantagem.
Uma jovem senhora constrangida,
e um detetive perspicaz.
Eu tinha certeza de que estava sendo seguido pelas ruas de Brás de Pina. A gente percebe, sente, mesmo não olhando pra não dar bandeira. Mas era tão ostensivo. Parei e fingi procurar algo nos bolsos. Olhei assim de soslaio. Só havia uma possibilidade e era impossível: uma senhora agarrada na sua bolsinha de crochê, cabelos grisalhos e jeito de sem jeito. Virei e fiquei de frente pra ela. Assustou-se, corou, e entrou na primeira porta que viu. Era o bar do Xará. Entrei também e fui até ela que estava encostada no balcão encenando uma espera.
- A senhora está procurando alguém? – Perguntei simpático.
Ela fez que sim com a cabeça e não conseguia parar. Estava nervosa e envergonhada. Levei-a para uma mesa e pedi um suco de maracujá, ao Fino. Mais calma conseguiu falar:
- Minha patroa tem um problema muito sério e eu disse que o senhor podia ajudar. O senhor é o seu José Silva, né? O senhor é detetive?
Confirmei sem contestar, não adiantava. Ela me contou uma estória enorme, explicando os detalhes. Resumindo: a patroa, uma jovem senhora estava sendo chantageada. A ameaça era grave e muito original, e o montante alto o suficiente para desestabilizar a família. Por isso estava disposta a pagar bem por meu trabalho. Enfim alguém pensava no meu lado.
Depois de muita insistência consegui falar com a jovem senhora. Um encontro cercado de cuidados e despistes. Acabei num restaurante na Barra da Tijuca.
A chantageada era uma morena muito bonita e um outdoor da riqueza: carro, roupa e acessórios, tudo coisa fina. Respondeu minhas perguntas sem tirar os óculos escuros e sem levantar os olhos. Um sujeito ligou e disse que sabia que ela estava com uma DST*. Como? Ela não fazia idéia. “E estava?” Perguntei. Havia sido diagnosticada há menos de um mês e já estava tratando. Mas o cara disse possuir um laudo médico e se não recebesse a quantia, mandaria para o marido.
Para não aumentar o constrangimento não perguntei as circunstâncias, não vinham ao caso. Mas como o laudo médico foi parar nas mãos do meliante? Precisava falar com o médico. Ela não disse nada, apenas me passou o cartão e se retirou, carregando a vergonha e a culpa. Olhei o cartão e entendi: era na verdade uma médica, uma proctologista. Marquei uma consulta.
- Doutora, a senhora me desculpe, mas não vim me consultar. Estou tentando resolver um assunto muito sério que provavelmente começou aqui no seu consultório.
- Como assim, meu senhor? Disse a médica na defensiva.
Expliquei o caso.
- Atendo meus pacientes com absoluto e rigoroso sigilo. O que se passa aqui dentro, o que me contam os pacientes e os resultados dos exames, vão para os arquivos, aos quais ninguém tem acesso, a não ser eu.
- Entendo doutora, mas veja bem, o laudo chegou a mãos estranhas, então alguém mais sabe. Alguma possibilidade de uma faxineira, ou mesmo sua secretária ter acesso aos arquivos?
- Não vejo como, uma vez que ficam trancados aqui, - mostrou um arquivo de metal com fechadura, - ou no computador, que tem senha para ser acessado. – Fez uma pausa para pensar e analisar. – Sinceramente não tenho idéia de como essa pessoa obteve a informação, a não ser... - Mostrou as palmas das mãos e esperou por minha curiosidade. – A não ser que seja o namorado. Eu disse que ela precisava falar com ele. Alertá-lo.
Saí convencido de quem era o culpado. Era só me dizer o nome do namorado ou amante, que as coisas começariam a se resolver. Mas que nada. Tinha sido um caso fortuito com um turista estrangeiro, mais especificamente um italiano, do qual só sabia o primeiro nome e vice e versa. Voltamos ao zero a zero.
Enquanto bebia a segunda caipirinha de lima preparada pelo Fino, trabalhava nas possibilidades: a doutora, fora de cogitação. Sobravam a secretária, que poderia ter uma cópia da chave do arquivo, ou a senha do computador. A faxineira, com as mesmas possibilidades, ou... O celular tremeu no bolso. Era a doutora.
Me recebeu no consultório e mostrou-se muito preocupada:
- Seu Silva, andei pensando e conversando com alguns colegas e há uma coisa muito séria, uma possibilidade que acho, o senhor deve checar. Mas veja bem, é apenas uma possibilidade, não há da minha parte qualquer acusação ou mesmo insinuação. – Aguardei ansioso pela sugestão. – Nós somos obrigados, ao pedir certos exames, ou em caso de indicação cirúrgica, a enviar ao plano de saúde do paciente, um laudo detalhado, para justificar o pedido. Disse-me um colega, eu não conheço, que o laudo é examinado por uma série de - fez o sinal de aspas com os dedos - burocratas do seguro, que liberam ou não os exames ou a cirurgia.
A coisa não era simples. Um caso desse pedia a intervenção da polícia, mandado judicial e certamente acabaria em escândalo. Foi para evitar isso que minha cliente me contratou.
Sobravam poucos meios para elucidar o assunto, escuta telefônica, pagar e tentar prender o chantagista no ato, enfim, tudo muito arriscado. Enquanto isso o sujeito tocava mais terror, com ameaças e promessas e o tempo se esgotava.
Naquela noite Mariluce, minha sempre rainha de bateria, andava nua pela casa e, com seu jeito despachado, me deu um caminho: “Vai lá e olha pra cara de cada um”. –Ela disse.
Acordei cedo e fui até a sede do plano de saúde. Criei um caso danado atrás da liberação de uma cirurgia urgente que minha mulher precisava fazer, caso de vida ou morte. Acabei na sala da médica gerente do setor de análise dos laudos. Enquanto tentava explicar o inexplicável, vi bem quem trabalhava na sala. Dois suspeitos: um rapaz que me olhava com insistência e um senhor com cara de cristão, desses que pregam na rua. Fiquei com o rapaz, intuição. Segui o rapaz, que o tempo todo parecia desconfiado, olhando para os lados e para trás, mas sou bom nesse quesito. Não deu outra, o cara morava no mesmo bairro da minha cliente. Esperei com paciência. Uma senhora entrou na casa. Não tive mais dúvida.
Bati e ele atendeu. Levou um susto, mas manteve a pose.
- Quero falar com a senhora que mora aí. É sua mãe?
- Minha tia. O que você quer com ela? – Disse desconfiado.
- Acho que você sabe. Afirmei num meio sorriso.
Ele deu um passo a frente, puxou a porta e suas intenções ficaram claras:
- Amigo, preciso desesperadamente da grana. Os caras vão me matar se eu não der a grana pra eles, mas divido com você. O marido da mulher tem muito dinheiro.
- Amigo, imitei, você deu o maior azar. É raro, mas estão me pagando e o negócio é botar você em cana.
A porta foi puxada e a senhora apareceu agarrada na bolsinha de crochê. Tinha ouvido tudo e sofria, mas o olhar triste era de compreensão.
O rapaz, em desespero, tentou correr. Levou uma rasteira e conseguiu cair de costas. Olhou pra tia e começou a chorar.
A tia tentou explicar porque tinha me procurado, me disse que trabalhava para a minha cliente há muitos anos e sempre falava dela para o sobrinho, mas que nunca poderia imaginar e aquela ladainha de sempre.
Sorri para ela e pisquei um olho. Ela deu um rápido sorriso envergonhado e foi consolar o sobrinho.
Formalizamos a acusação como roubo de documentos e tentativa de extorsão, sem revelar o nome da vítima. Coisas de velhas amizades.
E dessa vez recebi muito bem pelo meu trabalho. Apanhei a Mariluce e a noite foi sensacional.
(* DST – Doença sexualmente transmissível.)
Ilustração: Murilo Martins
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