contando com a sorte.
Até aqui sabemos que um possível bandido apaixonou-se perdidamente pela médica legista, doutora Marisa. Fui encontrar o cara, com a perigosa missão de demovê-lo da paixão, algo assim um pouco mais complicado do que tirar dinheiro de velhinha. Mas é este o trabalho de um cara como eu: duro e perigoso.
Conversávamos ao lado de uma mesa de sinuca.
- Acho que no amigo eu posso confiar. Ele disse e se chegou assim meio na intimidade. Pode me chamar de Tora, apelido de infância, sabe como é que é, o cara aqui faz presença, disse olhando para o próprio baixo ventre. É o seguinte: a coisa lá em cima ta esquisita. Olhou para os lados se certificando da privacidade. O dono ta jurado e os alemão tão pra subir. To dando um tempo no asfalto até a barra ficar limpa. Mas não dá pra pedir a doutora pra esperar, essas coisas de mulher têm hora e a hora é essa. Será que o amigo dava aí uma guarita? Dá pra rolar aí um reforço, um capilé. Tudo na boa, na limpeza, na moral.
Era essa a deixa, mas precisava ir devagar. Já tinha a confiança, precisava conseguir a verdade.
- Qual é? Manda vê...
- Seguinte: sei que amanhã é dia dela aí com os presunto. Vou puxar uma lata, pra me mandar com ela. Só que o marido ta sempre na cola, o corno não alivia. É aí que tu entra.
- Entra como? Perguntei já sabendo que era de gaiato.
- Pô, irmão. Vamo desviar o cara, não posso vacilar que a minha já sujou faz tempo. Mas é na boa, só tirar o cara da área, dá um tempo, uma ou duas horas e libera o corno.
- Demorô. O amigo é que manda.
O Tora mostrou nos dedos o que eu ia levar, usou todos os dedos das duas mãos. Pensei em negociar, mas deixei pra lá e pedimos outra rodada.
Ficou tudo combinado para o dia seguinte. Ele levaria as armas e a grana. Roubaria o carro uma hora antes e depois, "lua de mel e me esquece, malandro", ele falou soltando uma gargalhada assustadora, pra quem sabia o motivo.
Liguei pra doutora e disse que estava tudo bem, que o cara não ia mais incomodar. Podia ir sossegada para o plantão e esquecer o assunto. Não acreditou, queria saber como tudo acontecera. Falei que iria visitá-la e marcamos um café ali por perto do IML.
Fui ver um amigo da polícia, um cara que me devia uns favores. Ia aumentar meu crédito. Sentamos diante de um computador e ele foi passando uma série de fotografias, um monte de gente feia e mau encarada. E não é que lá estava o Tora: Jair Menezes Rosa. Aparecia com um enorme currículo que ia de assalto, passava por roubo de carro e chegava a seqüestro e latrocínio. Podia se candidatar, mole, mole. Só de mandado de prisão tinha uns dez. No momento era procurado por ter recentemente se graduado em estupro. Um fenômeno.
Acertei tudo com meu amigo e fui encontrar Mariluce no bar do Xará. Ficamos até tarde apreciando as caipirinhas de lima do Fino e depois caminhamos por Brás de Pina, curtindo uma de namoradinhos até a casa dela. Enquanto andávamos, pensava em como esse mundo está perigoso. Por sorte a jovem doutora pressentira o perigo no assédio do Tora, mas em geral nem perceberia nada. Fora salva pelo sentimento mais improvável, partindo de um tipo como aquele. O amor que ele sentiu por ela freou de alguma forma os instintos do predador, por um tempo, mas o suficiente para ser salva.
- O que houve? Ficou tão calado. Quis saber Mariluce.
- Nada, só estava pensando em como gosto de caminhar pelas ruas, assim de mãos
dadas com você.
A frase me fez ganhar o grande prêmio da noite. A moça se abriu e me entregou tudo o que eu queria.
No outro dia, na hora marcada, fui ao encontro do Tora. Tomei algumas precauções e conferi se estava tudo certo. O cara já estava lá pronto para a ação. No banheiro do boteco me passou uma automática novinha, pente carregado e número de série raspado.
- Pra que tudo isso, cara? Perguntei com sinceridade.
- Fala sério, irmão. Tu nunca botou a mão numa dessas... Aí, é um presente. Se fizer tudo direitinho leva a grana e o ferro. Gostou?
Examinei a arma, uma GLOCK, G-28, calibre 380, olhei pra ele, e ele me olhava em expectativa, queria um sinal de agradecimento.
- Valeu irmão. Puta presente. Pisquei o olho e enfiei a arma na cintura. To na sua.
Depois de se preparar aspirando tudo o que podia, Tora foi buscar o carro. Antes me indicou toda a movimentação do casal. Estava com tudo bem preparado e planejado. Em poucos minutos apareceu com um carro importado. Foi para a esquina próxima do IML e me deu as instruções finais.
Assim que o marido encostasse o carro eu o renderia e esperaria a doutora entrar no carro. Na esquina ela passaria para o carro dele e o marido ficaria por minha conta. Não interessava a ele o que eu faria.
Fui para o ponto indicado e chequei se meu amigo da polícia estava a postos. Não tive resposta no celular. Mas o cara era de confiança e não ia perder a chance de fazer a prisão.
Fiquei observando e esperando que o carro do bandido fosse abordado pela polícia e o cara preso por porte ilegal de arma. Mas não houve aproximação nenhuma. O marido estacionou na porta do IML. Tora piscou a luz do carro indicando que o alvo chegara. Pude ver a doutora Marisa se despedindo e caminhando para a saída do prédio.
A polícia já deveria ter abordado o Tora, dado uma geral no carro e encontrado a arma. Mas nada. Eu não podia arriscar, não tinha idéia do que ele faria se eu não entregasse a médica.
No meu plano Marisa jamais saberia o que se passaria ali, mas ia precisar de um plano B e nada me ocorria.
Tora piscou de novo os faróis, com mais insistência. Guiado pelo instinto e por não ter alternativa, corri em direção ao carro do marido, antes que ela saísse do prédio. No último momento desviei e fui em direção à esquina. Tora não entendeu e não teve tempo para pensar. Fingi que falava alguma coisa e pulei pra dentro do carro. Saquei a arma e a encostei na cabeça dele.
- Perdeu amigo. Falei ao mesmo tempo em que estranhava o sorriso com que ele me olhava.
Do banco de trás surgiu uma figura com a arma engatilhada e pronta para atirar. Ouvi o barulho do tiro, ao mesmo tempo em que, instintivamente apertei o gatilho da minha pistola. Alguma coisa quente molhou meu ombro e a luz de um farol iluminou a figura do meu amigo da polícia, em pé ao lado do carro, abaixando a arma de onde ainda saia fumaça. Olhei e vi o carro da doutora virando tranqüilamente a esquina.
Uma rápida olhada e vi uma cena nada bonita. Duas cabeças estouradas e vidros e bancos vermelhos. Meu amigo fez um sinal indicando a porta e pude ler seus lábios “vaza!”
No outro dia, fui ao encontro da doutora Marisa, no café perto do IML. Ela parecia em dúvida entre o alívio, a tensão e a curiosidade.
- Adivinha em quem fiz autópsia hoje? Ela perguntou, sondando minha reação.
- Nem imagino. Respondi esvaziando a xícara de café.
Isso é tudo pessoal...
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