Assassinatos em série.
Uma motivação e
muitas dúvidas.
Tudo começou quando passei pela barbearia do Vicente e ele fez um sinal me chamando. Olhei no espelho colocado estrategicamente na porta e vi que meu cabelo estava grande e a barba por fazer.
- Senta aí que vou fazendo sua barba enquanto você lê uma coisa no jornal.
Não discuti. Sentei e como não é possível ler jornal enquanto se faz a barba, o próprio Vicente fez um resumo:
- Um primo distante da minha mulher, o Gilmar, foi morto na casa dele, ali na Penha. Dois tiros na cabeça sem apelação.
Outra coisa que não dá pra conciliar com fazer a barba é falar. Continuei ouvindo e dialogando com a testa e os olhos, ora franzindo um, ora arregalando o outro.
- O diabo é que semana passada, um amigo desse Gilmar, também morreu do mesmo jeito. Em casa, dois tiros e ninguém viu nada. Esse morava lá pras bandas de Realengo.
Depois da primeira passada da navalha pude falar:
- Não tinha ninguém nas casas...
- De jeito nenhum. Os dois moravam sozinhos, cada um na sua casa.
- Trabalhavam em que? - Perguntei já com mais creme no rosto.
- O Gilmar eu sei que era de uma dessas igrejas aí, o outro não sei bem, parece que
era vendedor.
- Bom, algo eles fizeram. Ninguém leva dois tiros na cabeça só porque ela fica em cima do pescoço. A polícia vai resolver.
- Sabe Silva, as notícias correm e a patroa me pediu pra pedir a você, sabe como é?
Expliquei ao Vicente que esse tipo de crime só a polícia pode se meter. Precisa de uma investigação mais longa e os caras já ganham pra isso. Mas a cara dele e a última escanhoada deixaram claro seu desapontamento. São os momentos em que minha vontade de pegar a Mariluce e me mandar para o interior, plantar um pé de lima da pérsia e comprar um barco, mais ganha força.
Fiquei na encolha uma semana. Levei meu disco do Raul Seixas e um livro do Garcia-Roza e me internei na casa da Mari. Devia isso a ela. Mas justo no domingo seguinte ela voltou da padaria com um jornal. Li no banheiro e fiquei sabendo que um sujeito tinha sido morto com dois tiros na cabeça, em casa, no bairro de Marechal Hermes. O repórter até mencionou a coincidência, ou não, com os outros dois crimes. Não encontrei nenhuma informação sobre a vítima. Com gente pobre é assim mesmo.
Depois de receber da Mariluce o tratamento especial, que só ela sabe dar, andei pelas ruas quentes de Brás de Pina até minha casa. Na portaria seu Geraldo o portuga estava acompanhado do Vicente com a patroa. O primo distante seria em breve um cunhado próximo, ou seja, sobrou pra mim.
Procurei a delegacia encarregada do caso e me apresentei como parente interessado. As investigações não levavam a lugar nenhum. A relação entre as três mortes nem passava pela cabeça do Delegado. “Coincidência”. E mais nada foi dito. Conversei com o investigador. Só me disse que a última vítima trabalhava em eventos promocionais. Era casado com filhos e não foi morto dentro de casa e sim na porta. Fui ao bar buscar inspiração na caipirinha de lima do Fino, meu querido barman e garçom.
O que poderia ligar os três casos? O que esses três tinham em comum para levar alguém a se arriscar numa execução em série? Fui falar com a irmã da mulher do Vicente.
- O Gilmar era um cristão, um homem sem vícios. Levava a palavra de Jesus aos pecadores. Não devia nada a ninguém. – Ela disse emocionada.
- Onde ele ia arrebanhar almas pecadoras? Perguntei.
- Ia lá pro centro da cidade, no Largo da Carioca.
Dali para Marechal Hermes. A mulher da última vítima ainda estava muito abalada.
- Era um homem tão bom, ótimo pai. Ah moço, ele animava umas promoções de uma empresa grande, sempre no centro, na Largo da Carioca.
Deixou de ser uma coincidência, já era evidência. O amigo do Gilmar vendia cds de músicas para alguns cantores. Trabalhava onde? No Largo da Carioca. Deixou de ser evidência pra ser motivação.
Mas ainda estava muito longe de uma conclusão. O local sempre foi um dos mais movimentados da cidade. Milhares de pessoas trabalham e circulam por lá. Gente de todos os lugares e de todo tipo. Certamente era um caso específico, mas aí é que estava o problema, como identificar? O negócio era ficar de olho naqueles que trabalhavam vendendo, anunciando, animando por ali. Ia dar trabalho. E para piorar, nem um botequim à vista que servisse de ponto de observação.
Nos três primeiros dias nada de anormal, a não ser as princesas que passam pra lá e pra cá. Rainha só a Mari. No quarto e mais quente dos dias, apesar da garoa, um fato chamou a atenção: um sujeito se ajeitou como pode com sua guitarra, amplificador e caixa de som. Mandou ver. Tocava bem o danado. Não deu meia hora presenciei uma discussão. Um homem apareceu dizendo que aquilo era um absurdo, que atrapalhava o trabalho dele, que precisava de concentração, que pagava caro o aluguel e blábláblá. Saiu enfurecido e entrou num prédio bem próximo. Corri e consegui pegar o mesmo elevador. Saltamos no sexto andar e ele entrou numa sala em cuja porta estava escrito. “Resolva seus problemas, pela hipnose”. Dei um tempo e entrei. O mesmo sujeito me atendeu, quase pedi pra abaixar o rádio, mas ele mostrou pela janela o guitarrista tocando lá embaixo.
- É um inferno, meu amigo. Todo dia é isso. Parece um bando de formigas, sai um vem outro. Pago meu aluguel, os impostos, e já não consigo hipnotizar ninguém. E não adianta reclamar com o Prefeito, com o Governador, com o Bispo. É um inferno.
Estava realmente transtornado, entregue ao desvairo. Era compreensível, porém não fazia dele um assassino até ali.
Mas...
Continua na próxima semana.
Um comentário:
Adorei seu blog, muito sugestivo e bem cultural...parabéns
Aços
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