– Silva! – Silva!
Mesmo não conhecendo a voz olhei para a calçada oposta. Da porta do salão de beleza, Beautful Forever, acenava-me, com vigor, uma loira cuja barriga à mostra, apertada entre uma calça de cós baixo e um top justo, denunciava bons momentos de um passado recente. Hesitei por uns dez segundos e, diante da insistência resolvi conferir.
Atravessei a rua debaixo daquele maçarico, aliás, me pergunto ainda agora, o que estava eu fazendo na rua às três horas de uma tarde infernalmente quente? Não me lembro de nenhum motivo justo. Mas estava lá.
- Silva querido, que coincidência. Estava ali falando com Laís, ela me contando da amiga dela, um caso de polícia. Olho pra fora, assim do nada, e quem está lá do outro lado?
– Eu. Respondi com um sorriso forçando os cantos dos lábios.
– Venha, venha falar com ela. É uma ótima amiga. Vem de Copacabana uma vez por mês só para fazer o pé e a mão. Entra, entra.
Entrei no espantoso mundo dos salões de beleza
O Salão não era grande. Mas tinha o tamanho suficiente para abrigar, àquela hora da tarde, sete mulheres numa troca amistosa de egos por dinheiro. Laís, uma dessas típicas senhoras que nunca envelhecem, e jamais passam dos quarenta e cinco anos, jamais, me olhava com olhos esperançosos e interessados. Disfarçadamente olhou para a loira e piscou o olho, apertou os lábios e fez o sinal afirmativo com a cabeça. Fiquei muito lisonjeado.
– Pronto Laís. Aí está a solução de todos os problemas da sua amiga. Este é o
Silva. Falou a loira em tom teatral.
Laís estendeu-me uma mãozinha enrugada, insegura. Alguém trouxe uma cadeira e lá estava eu sentado no meio do salão, merecendo a atenção de sete mulheres. O silêncio foi de arrepiar. Esperei olhando fixo para a Laís que esperava alguma coisa ou alguém que lhe transmitisse coragem.
– O senhor, limpou a garganta duas vezes e continuou, o senhor é detetive particular?
Balancei a cabeça. Não podia negar e nem sair correndo. – Sim. É o que dizem.
– É. Eu queria uma, ou melhor, eu queria era que o senhor, sabe?
Nesse ponto a loira interferiu com a anuência da platéia:
– Ela precisa que você, acentuou com força a palavra você, resolva uma situação da amiga dela. Vai Laís, conta pra ele o que você estava contando aqui. Fala mulher!
Laís passou os olhos pelas seis mulheres e fixou-se nos meus. A cor castanha clara estava esmaecida por uma espécie de película transparente, mas tinha força. Olhando bem no fundo via-se a determinação espalhando-se pela íris. As espectadoras aguardavam cobiçosas.
– Prefiro que você vá a minha casa, lá em Copa. Ela disse entortando a boca afetada,
as pestanas alçando vôo.
Foi a minha deixa. Saí o mais rápido possível com o endereço rabiscado no pedaço arrancado de um capa de revista. Corri para a casa da Mariluce e acordei do pesadelo. Mal sabia que o mau sonho nem tinha começado.
Ser detetive há muito era meu ganha pão, então lá fui eu pra Copacabana. Um ônibus até o centro e outro até a princesinha do mar. Em dias quentes os ônibus com ar condicionado ficam condicionados à receita do patrão, ou seja, desaparecem. Por duas minguadas passagens de ônibus, fiz duas saunas com TV panorâmica ao vivo.
Laís morava em um pequeno apartamento com meia vista pro mar. Herdado de uma tia da qual cuidou até o fim e que, segundo palavras da própria Laís, morreu durante doze longos anos. Com o ap e a pensão da velhinha, pôde encher a boca pra dizer que morava na zona sul.
Ofereceu uma cadeira de plástico e sentou-se no sofá de dois lugares pra contar sua estória. Eu esperava a hora em que a tal amiga, carregando seu problema entraria pela porta, chorando e pedindo ajuda. Mas Laís tinha outras idéias.
– Na verdade seu Silva, começou dizendo desembaraçada, o negócio é comigo mesma. Falei lá no salão que era uma amiga, o senhor sabe, eu odeio fofoca e disse me disse. Mas é comigo. Aceita um licorzinho?
Recusei e insisti. – Qual é o negócio, dona Laís? Não tenho muito tempo.
– Não se preocupe que vou pagar ao senhor pelo trabalho. Minha amiga disse que às vezes o senhor nem cobra, mas faço questão.
Fez vários gestos com as mãos no ar, enquanto a boca de lábios vermelho sangue, se remexia em trejeitos jamais vistos por mim, uma evolução carnavalesca. Um tanto assustador, mas agüentei firme. Quando a voz saiu, era um ruflar que mexia todas as peles do rosto.
– Estou sendo perseguida por um vizinho. Um rapaz moreno, forte e terrível.
– Como assim? perguntei intrigado. O que ele quer? Ou o que ele faz?
– Ameaças. Outro dia me esperou no elevador. Assim que a porta fechou disse que adorava falar comigo e perguntou, melhor, ou pior, disse que queria me visitar, que tinha coisas pra me mostrar. Saí correndo e passei a tranca na porta. Não fechei os olhos a noite toda esperando uma invasão.
– Mas por que a senhora acha que ele quer lhe fazer mal?
– Seu Silva, de qual planeta o senhor é? O que pode querer um jovem com uma mulher que mora sozinha num apartamento desses?
Avaliei a preocupação dela e não cheguei a conclusão nenhuma.
– Não quero ter que sair da minha casa por causa de um, de um... o senhor sabe.
Que mania as pessoas tinham de achar que eu sabia de tudo. – O melhor a fazer é perguntar ao vizinho o que ele deseja. A senhora não acha?
Ela não respondeu. De repente ficou amuada, abaixou a cabeça e por um longo tempo parecia refletir sobre tudo. Balbuciou algumas palavras ininteligíveis e depois levantou o rosto com outra expressão. Foi então que vi o pesadelo começar.
– Se o senhor acha que precisa perguntar é a porta em frente. Falou passando a língua nos lábios, numa manobra que desejava que fosse sensual. Por um tempo não consegui desviar meus olhos daquela performance espantosa.
Ela começou a se mexer no sofazinho enquanto seus pés procuravam os meus, fazendo-a quase rolar para o chão. A voz áspera desaparecia por segundos perdida na sucção desejosa da garganta, e os dedos magros das mãos se esfregavam pelo próprio corpo.
Dei um pulo da cadeira e disse profissionalmente:
– Vou falar com seu vizinho. Volto logo.
O Rapaz atendeu a porta amavelmente. Muito jovem, não mais do que dezessete anos, abriu um sorriso.
– Companheiro, eu disse apressado, você conhece a sua vizinha aí de frente?
– A dona Laís? Conheço, por quê?
– Ela tem uma queixa contra você por assédio.
Ele acusou o golpe por exatos três segundos, então caiu na gargalhada.
– Caraca, você está brincando. Fala sério. A dona Laís? A coroa aí da frente?
Como assenti ele por pouco não rolou pelo chão. Olhou-me com lágrimas escorrendo e fechou a porta. Fiquei ali parado entre a raiva e vontade de gargalhar também. Um barulho atrás me fez virar. Com a porta semi aberta Laís se esfregava incontrolável no portal lambendo a madeira pintada de branco junto à dobradiça. Girei nos calcanhares e caminhei até as escadas, mais próximas do que o elevador, e desci esperando um ataque a qualquer momento.
Na portaria, sete andares abaixo, um faxineiro esfregava o chão. Antes que eu pudesse alcançar a rua ouvimos um grito queixoso: “Volta gostoso”.
Ao abrir a porta pra rua, o som dos motores se misturou à risada debochada do faxineiro. Olhei para o pedacinho de mar que se via dali e lembrei-me de uma frase ouvida em um filme: é doce morrer no mar...
Isso é tudo pessoal...
Um comentário:
Antonio,
Realmente é doce morrer na praia...ou no mar dos desejos.
Belo texto,
Abraços,
Carlos Eduardo
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