sexta-feira, 30 de abril de 2010

Degustação

                                                      Quando o sonho se desmancha

                                                                   começa a vida.

A moça olha para o relógio, ansiosa. O tempo escorre. Lento. Arrasta em seu vagar, o que resta de boa vontade. Tem que esperar. Questão de solidariedade, de gratidão.

Prende o chiclete nos lábios e tenta produzir uma bola. Fracassa.
Espia através da pequena grade que a mantém protegida e ao mesmo tempo distanciada da rua. Ergue-se um pouco da cadeira e vê a rua solitária, molhada e fria. Não um frio térmico, apesar do outono e do chuvisco, faz calor, mas uma sensação de frio circunstancial.
Ouve passos que se aproximam e a cabeça de um rapaz, coberta por um boné, aparece do outro lado da grade.
— E aí, Carol? — Ele diz impaciente.
— Faltam quinze minutos ainda. Espera.
Ela faz um gesto com a mão, que revela seu ânimo, mais do que as palavras.
— Cara, não vem ninguém, diz logo lá pro velho que já era. A gente vai se
atrasar.
— André, espera tá bom? Eu não posso ir. Até às oito e quinze, eu prometi e
não vou sair antes.
O rapaz afasta-se irritado, pragueja.
A moça tira um espelhinho da bolsa. Olha a franja que mal esconde a testa grande coberta de espinhas; começava a perder a cor amarelada já mesclada por fios marrons e pretos. Retoca o batom, ajeita o brinco, gatinhos pendurados, e mais uma vez repete o ritual de toda a semana: olha o relógio, espia a rua e não vê nenhuma alma viva.
Faltava um pouco para às oito e quinze, quando desiste. Sai do cubículo, tranca a porta, um hábito de quase três anos, e dirige-se a uma outra sala. Bate na porta e entra.
O velho sentado diante de uma antiga e caótica escrivaninha, parece menor do que realmente é. Diminuído segura o cachimbo “Billiard” apagado, o dedo indicador sobre o fornilho, a meio caminho da boca que aguarda a piteira com um leve ricto no lábio inferior. Olha na direção da moça, mas seu olhar divaga perdido em um outro tempo, resgata momentos fugazes de alegria e esperança.
— Seu Fabiano.
Ele estremece na cadeira e a coloca em foco, com um sorriso que não disfarça
sua angústia.
— Então? — Pergunta com falsa expectativa.
— Ninguém. Posso fechar?
Ele aquiesce com um gesto quase imperceptível.
A moça pisca os olhos várias vezes e recua até a porta. Não se importava com o fato
em si, arrumou outro emprego e começa na próxima semana, mas a visão daquele homem derrotado a emociona.
Antes de sair volta-se e os dois se olham à procura de palavras.
— O senhor quer que eu avise ao Miguel?
— Pode deixar eu falo. Obrigado.
— Seu Fabiano. — A voz vacilante.  — Sim?
— Deus lhe pague. — Da um passo atrás, mas volta cabisbaixa. — Boa sorte, viu?
Fabiano olha a porta sendo fechada melancolicamente. Deixa o pescoço pender para a esquerda, uma lágrima escapa e escorre até seu ombro.

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