Este texto foi minha primeira colaboração na revista Bagatelas!, se não me engano em 2007. Foi aí que tudo começou, quando conheci a rapaziada que fazia a revista, o site, e promovia os bate papos com escritores mais animados que já vi.
Foi quando lancei o pesudônimo Antonio Más, mas isso já está resolvido...
Ao texto:
A Procura
Um dia ela entrou na livraria, parecia cansada. Fazia muito calor lá fora e a agitação era intensa. Olhou como quem procura alguma coisa, mas sem se deter em nada, evitando os olhares dos funcionários. Andou hesitante por entre as estantes passando a vista sobre as lombadas dos livros, mas tudo de maneira superficial, corrida.
O vendedor, solícito aproximou-se: “A senhora procura algum livro especial?” Um leve rubor pigmentou seu rosto de rugas acentuadas, de quem viveu a vida como pôde. A voz saiu rouca, insegura: “Não meu filho. Eu posso olhar os livros?” “Claro. Fica a vontade. Se precisar de alguma coisa é só chamar. Meu nome – disse mostrando um crachá – é Marcelo. E o da senhora?” Olhos pequenos, úmidos, tomados pela catarata, pousaram docemente nos olhos do vendedor. “Lurdes”. Um sorriso tímido apareceu nos lábios, agradecendo a consideração.
Mãos trêmulas apanharam aleatoriamente um livro na estante. O dedo polegar, com uma destreza surpreendente, fez com que as folhas corressem rápidas entre ele e o indicador. Repetiu a singela operação de maneira mais lenta. O olhar arguto por trás de uns óculos antigos tirados da bolsa. Colocou o livro sobre a pequena mesa e apanhou outro. Repetiu os mesmos gestos e pegou um terceiro livro. Marcelo acompanhava os movimentos da senhora um tanto intrigado. Atendeu outro cliente e aproveitou a proximidade: “A senhora não quer mesmo ajuda?” “Obrigada, não precisa”. “Tem certeza?” Ela apenas balançou a cabeça. Marcelo percebeu que a expressão revelava mais do que a timidez, havia uma tristeza inerente, quase secular, algo que não cicatrizou no coração, na memória ou na alma.
E ela continuou sua estranha relação com os livros, pelo resto da tarde. Ao final havia uma estante com prateleiras quase vazias e uma mesa com quatro pilhas simetricamente arrumadas. Dona Lurdes começou a colocar os livros de volta. Marcelo percebeu que havia uma organização, uma lógica. A pilha sobre a pequena mesa mantinha a ordem inversa da prateleira.
Mais uma vez Marcelo aproximou-se: “A senhora pode deixar que eu coloco no lugar, não tem problema.” Foi ignorado. A velha senhora continuou seu trabalho lento, meticuloso, dedicado. Quando todos os livros estavam rigorosamente no lugar, dona Lurdes saiu, arrastando os pés, para a noite que já caia, amenizando um pouco o calor.
No outro dia, na mesma hora, a senhora entrou no sebo. Dessa vez dirigiu-se ao Marcelo com um sutil piscar de olhos e um quase sorriso. Caminhou decididamente para a estante, no fundo da loja. Lá reiniciou seu estranho trabalho, exatamente como no dia anterior.
Marcelo a princípio sem saber como agir, continuou com seus afazeres. Naquele momento recebia uma enorme caixa, que trazia parte de uma biblioteca particular, que havia comprado. Vez por outra se dava conta da presença de dona Lurdes. Sem perguntar se queria ou não, levou uma cadeira, convidando-a a se sentar. Ela agradeceu, com mais um quase sorriso, mas não se sentou. O trabalho exigia um constante vai e vem tirando o livro, folheando, colocando sobre a mesa e pegando outro.
Exatamente como no dia anterior, recolocou tudo no lugar e se foi. E assim, dia após dia, dona Lurdes, sempre na mesma hora, estivesse chovendo ou não, entrava na loja e repetia os mesmos gestos, só trocando de estante, numa evolução cuidadosamente estudada. Já fazia parte do folclore do sebo. Vários clientes perguntavam pela velhinha dos livros, quando visitavam a loja em horários diferentes.
Marcelo comentou com amigos donos de outros sebos e se admirou ao saber que ela era conhecida por muitos, que contavam a mesma história. Em todos os outros ela folheara todos os livros durante alguns meses.
Um dia ela não apareceu. Marcelo estranhou. No outro também não. Marcelo se deu conta que não sabia nada sobre a senhora, a não ser o nome. Achou incrível, uma convivência longa, sem nenhuma troca de informações. E o tempo se passou e nada, dona Lurdes não apareceu mais.
Muito tempo depois, alguns meses, ou talvez mais de ano, Marcelo foi fazer um inventário no estoque do depósito. Separou alguns livros e levou-os para a loja. Catalogou e vistoriou para saber se estavam em perfeitas condições. Das páginas de uma antiga edição de Dom Casmurro, voou um papel amarelado, onde Marcelo, trêmulo pôde ler:
Rio de Janeiro, junho de 56.
Ludes, meu amor. Nunca se separe desta carta. Enquanto viver leia estas palavras e estaremos sempre juntos...
Isso é tudo pessoal...
Nenhum comentário:
Postar um comentário