quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Um Conto


Em 2007, o grupo que compunha o coletivo Bagatelas!, se uniu pra fazer homenagem as livrarias prediletas. Cada um escolheu a sua e escreveu o seu conto. O projeto de um livro, com os contos, infelizmente ficou pelo caminho. Este é o meu.

O nome do sebo, assim que o vi pela primeira vez, fez com que eu entrasse na loja. Embora sempre tenha frequentado sebos, talvez instigado pelo nome, descobri uma nova sensação, como se realmente mergulhasse em um mar de histórias.
O texto é ficcional, claro, mas a personagem é verdadeira.

A saga de Aniella, em Aqui Estamos Nós, volta em janeiro, depois do dia 15.

Desejo a todos um 2012, cheio de boas histórias.




BAIXINHA

Era a primeira vez que saía da comunidade. Não estava especialmente animada, já conhecia o mundo inteiro, ou quase. A cidade então, nem se fala, sempre tão bem mostrada em novelas e nos telejornais.

Nascera e crescera ali. Bem, crescera era modo de dizer ficara baixinha igual à avó, e esse era seu apelido. A paralisia infantil atrapalhou um monte de coisas, mas a principal delas foi a freqüência na escola. Esforçou-se por um tempo, mas as dificuldades eram enormes e os colegas não ajudavam, as brincadeiras eram agressivas e a deixava mais aleijada do que era.

            Aprendeu a juntar as letras e se tivesse tempo conseguia ler algumas palavras. Mas nada disso importava, ainda era nova, dezesseis anos, aprenderia tudo na marra. Uma coisa que aprendeu nesse tempo foi lutar. Toda sua família lutava pela sobrevivência com muita garra, ela especialmente.

Seu pai, Antonio da Silva, era um homem trabalhador e responsável. Veio de Pernambuco ainda criança, com trabalho, conseguiu estudar, construir sua casinha e criar a família. Foi morar na favela da Rocinha por conta de uma oportunidade imperdível. Na mesma semana em que foi empregado como faxineiro em um prédio de Copacabana, o porteiro estava para se aposentar e voltaria com a família para o Rio Grande do Norte. Por isso vendia a casa em condições excepcionais. Antonio negociou a casinha em Nova Iguaçu e comprou a tranqüilidade de ficar bem mais perto do trabalho. Trouxe a família e ali a Baixinha nasceu.

Quando tinha seis anos, Baixinha viu seu pai ser morto. Em sua cabecinha o pai morreu como herói, defendendo a família. Nunca entendeu os motivos fúteis que cercaram o crime. O pai fora à birosca com a filha mais velha, treze anos, o corpo já forjado no trabalho duro de lavar e passar. Um garoto, pouco mais velho do que a filha, armado com um revólver e por um poder exacerbado, conferido pelo chefe do tráfico de drogas, se engraçou com a menina e não teve dúvidas, nem culpas, em descarregar a arma no pai que puxou a filha para tirá-la dali.

A mãe, a irmã e o irmão, mais velhos, trabalhavam fora, saiam cedo e voltavam no final do dia. Baixinha cuidava da casa e do filho pequeno da irmã. Limpava, cozinhava, inventava coisas para distrair o pequeno e preparava o jantar, sempre servido à medida que cada um ia chegando, a irmã era sempre a última. E quando chegava não queria nada com o filho. O irmão tentava fazer o papel de chefe da família, o que provocava muitas brigas. Baixinha assistia aquilo tudo e sentia-se a mãe do sobrinho.

Nas tardes quentes e arrastadas, contava histórias para distrair a criança. Tirava idéias da televisão e inventava casos mirabolantes com gente bonita, rica, chique e sempre de bem com a vida. Contava e sonhava, imaginando-se no lugar de várias personagens, sempre as boazinhas, as que no final da novela venciam.

Seu universo se dividia entre o mundo da televisão e a realidade atrás da porta. Sempre que precisava sair de casa para buscar alguma coisa na birosca, ficava apreensiva. Ainda que não se lembrasse mais com clareza da morte do pai sentia um medo inexplicável. Não gostava do que via e nem do que ouvia apesar de ninguém falar com ela. Aparentemente nem a notavam, mas ela sentia hostilidade na indiferença, como se não fizesse parte, não integrasse a comunidade. Por isso voltava rápido para seu mundo, sua vida de responsabilidades com a casa, com o sobrinho, um mundo só dela, de pura fantasia.

Uma noite, a mãe chegou muito mais tarde do trabalho. Um fato nunca antes acontecido. Baixinha já estava à beira do desespero, sem notícias. Na casa não havia telefone e só os irmãos tinham celular de cartão. A comunicação só acontecia de viva voz. A mãe já uma senhora de setenta anos, passou mal e a patroa a levou na emergência do hospital e a deixou lá. Depois de horas aguardando na fila, fora examinada pelo médico e aconselhada a ficar de repouso por alguns dias e a fazer uma rigorosa dieta e levar uma vida mais saudável, a pressão estava muito alta. Era importante fazer um exame completo de sangue.

- Liguei de lá mesmo para a dona Valéria e disse que o médico passou essa receita. – Contou para os filhos que a cercavam na mesa. – Mas ela não pode ficar sem ninguém lá, tem muito serviço. Mas eu não to agüentando não. Passei muito mal. Aí eu disse pra ela que ia mandar minha filha no meu lugar por uns dois dias enquanto eu descanso um pouco.

Os três filhos se entreolharam. Quem iria substituir a mãe? Os olhares caíram sobre a Baixinha. Ela sorriu encarando como brincadeira.

            Mas como, se nunca saíra da Rocinha? Não fazia a menor idéia do mundo lá fora. Nunca a levavam a lugar nenhum, nem a praia que os irmãos iam com frequência aos domingos.

            - É minha filha, nós não pode ficar sem o dinheiro e se num for ninguém a dona Valéria arruma outra. Sua irmã tem o trabalho dela, e eu posso ficar com o neném, isso eu posso.

Não tinha contestação, era assim e pronto. A rotina voltou ao normal. Baixinha serviu a janta, lavou e secou os pratos e as panelas, ajeitou as coisas, trocou o pequeno, fez a mamadeira e foi para cama. Nessa noite nem inventou história pra dormir, sequer se imaginou como a moça pobre que chegava na cidade grande a procura de parentes e de um jeito de ganhar a vida. Sentia-se exausta e com o aperto no peito, o mesmo que sentia quando ia à birosca.

De manhã bem cedo, ninguém falou nada desnecessário. A mãe deu a Baixinha o dinheiro da passagem e ensinou qual o ônibus pegar. Explicou, com detalhes, como chegar no apartamento de dona Valéria, dando as referências.

- Fala com o trocador do ônibus que você quer saltar perto da rua Hilário de Gouvêa. É perto do ponto.

Assim dito, foi cuidar do neto.

Baixinha pegou a bolsa da mãe, conferiu o dinheiro para a ida e a volta, olhou sua certidão de nascimento, que via pela primeira vez e conseguiu distinguir seu nome escrito em letra mais escura. Leu baixinho e estranhou o som:

- Maria das Dores Silva.

Deu uma última olhada para a casa e saiu.

Arrastou o pezinho torto em direção ao ponto de ônibus, muito além dos limites com os quais estava acostumada. Manteve a cabeça baixa e nos raríssimos momentos de silêncio podia ouvir o próprio coração. 

Pensava enquanto olhava de través as pessoas que passavam por ela: “já conheço o mundo inteiro. A cidade então, conheço tudo. Já vi na televisão, não tem diferença”.

Lembrou-se da moça da novela e por alguns segundos levantou a cabeça e respirou fundo, sentindo um outro estranho sentimento, que não tinha idéia que se chamava orgulho, e era bom. Ao cruzar com o olhar de um homem que estava na janela de uma casa, voltou a baixar a cabeça e a ouvir o coração.

Entrou no ônibus, lotado e barulhento. As pessoas falavam alto e riam, e Baixinha ficou um pouco atordoada. Mas assim que o ônibus começou a rodar descobriu uma coisa nova. Um mundo novo passava diante dela. Era mais rápido e mais vivo do que a televisão. Uma sucessão de imagens e cores, tudo em movimento mudando constantemente de muro para casa, para mar, para céu, carros, gente, quanta coisa.

E o ônibus se meteu por umas ruas cheias de lojas com coisas diferentes, panos, roupas, televisões, comidas. Tudo passava rápido, mal dando tempo de reter as informações. Quando parava, Baixinha ficava deslumbrada com tanta gente atravessando de um lado para o outro, parecia que estavam perdidas sem saber para onde ir.

Bem mais adiante tudo foi ficando mais lento. O ônibus começou a rodar aos trancos. Às vezes corria, outras vezes andava muito devagar, até que parou no meio da rua, numa rua em decida, e podia-se ver lá na frente um pedacinho do mar. Baixinha começou a olhar as fachadas das lojas. Arriscou-se a ler os nomes, alguns inelegíveis, que ela logo entendeu ser outra língua. Mas em uma delas estava escrito uma coisa que a fez sentir um frio na barriga, uma emoção única. Leu com grande dificuldade, mas conseguiu entender. Estava escrito: Mar de Histórias.

O ônibus andou e Baixinha quase arrumou um torcicolo tentando ver o que havia  dentro da loja. O trânsito se mexeu de repente, não conseguiu ver nada. Seguiu repetindo o nome Mar de Histórias, e nada mais a interessou. Ficou atenta apenas na indicação do trocador e saltou no ponto indicado.



Dona Valéria não gostou muito do que viu a sua porta. Acostumara-se com os serviços da mãe da Baixinha, que já trabalhava pra ela há mais de dez anos. Como uma aleijadinha daria conta do recado. O apartamento era grande, os filhos pequenos e bagunceiros e ela e o marido gostavam de tudo muito limpo e organizado. A comida tinha que ser feita no dia e ainda precisava comprar coisas no supermercado.

Demonstrou seu descontentamento e passou as ordens, de um jeito seco. E era muita coisa mesmo para fazer. Baixinha nem se preocupou, trabalho era como outras coisas que não podia deixar de fazer, como respirar e comer. Apanhou o material de limpeza e começou a faxina. Uma coisa boa fazia seu peito arder toda vez que se lembrava do nome escrito numa placa grande sobre a loja, Mar de Histórias, repetia e vinha a dúvida: teria lido direito. Foi tão rápido e com tanta coisa acontecendo a sua volta. Ainda bem que voltaria à casa de dona Valéria no outro dia, poderia ler de novo e confirmar. Mas o que seria aquilo? O que poderia ter dentro de um lugar chamado Mar de Histórias? Todas essas questões ocupavam seus pensamentos e o dia passava e ela cumpria as tarefas.

Dona Valéria saiu logo após dar às ordens e só voltaria no final do dia, já com os filhos. Queria tudo muito bem arrumado e a comida prontinha. O marido chegava do trabalho muito cansado e gostava de comer antes do telejornal. Baixinha ouviu e pensou: “esse povo rico é igual a gente, sem tirar nem por.” Fora o tamanho do apartamento, as coisas de luxo, como o sofá branquinho e enorme na sala, o resto era igual também, pior, nem vista tinha. Todas as janelas davam pra alguma outra janela. O barraco pelo menos tinha um visual de fotografia. E ela limpava, arrumava, espanava, ajeitava e nem precisava prestar muita atenção no que fazia, podia pensar e tentar adivinhar o significado do nome. Mar ela sabia muito bem o que era, via todos os dias lá do morro. Nunca entrou na água, mas prestava atenção na conversa dos outros e sabia como era, o sal, as ondas. História também sabia, não era o que ela vivia inventando para contar ao sobrinho? Agora, como seria um mar de histórias? Sua cabeça chegava a doer em busca de uma explicação plausível.

Muito antes da hora marcada já estava com tudo pronto. E quer saber? Ficou tudo muito melhor e mais arrumado. Sua mãe era boa faxineira, mas já estava velha e cansada. Sentou na sala para esperar. Ficou olhando para uma televisão estranha, muito grande e reta. Aproximou-se para ver melhor, era engraçada, não tinha aquela caixa atrás. Não achou como ligar. Sobre a mesinha de centro viu quatro controles remotos, de formatos estranhos. Resolveu não mexer. Não era direito.

Na hora marcada dona Valéria chegou com os filhos. Dois meninos lindos e curiosos. Olhavam pra ela rindo meio disfarçado toda vez que ela andava. Olhavam para seu pezinho torto e a perna mais fina. O maior de nove anos era do tamanho dela. Achou os meninos educados e nem ligou para os olhares, estava acostumada a ser diferente. “Menino rico raramente vê gente aleijada”. Conversou com eles sobre a escola e eles responderam rindo, eram realmente muito educados. Dona Valéria passou a casa em revista, sempre com Baixinha a segui-la esperando alguma reclamação. Mas a patroa parecia satisfeita, mesmo não dizendo nada. Foram à cozinha. Destampou as panelas, cheirou, passou pela mesa, trocou alguns talheres de lugar e finalmente olhou assim meio rápido para a Baixinha e disse:

- Você vem amanhã na mesma hora, sem atrasos, por favor. E diz pra sua mãe procurar o médico e descansar o máximo possível.

E nada mais.

Os meninos riram, e Baixinha saiu arrastando o pezinho. Segurou o medo na

hora de entrar no elevador, que a deixara enjoada quando subiu. Lá no fundo uma sensação diferente a fazia sentir-se bem, nunca fora elogiada, experimentava a sensação boa do dever cumprido.

            No ônibus ficou atenta a janela. Será que passaria de novo em frente ao

Mar de Histórias?



            Foi uma noite longa. Deitou-se tarde, depois de lavar os pratos e panelas e

arrumar a cozinha. Não falou com ninguém. Quando chegou sua mãe assistia à novela, o menino já dormia e os irmãos haviam saído. Assim que deitou dormiu, mas teve um sonho esquisito, estava no mar e tentava contar uma história para os filhos da patroa, eles riam e nadavam pra longe dela. Tentava alcançá-los, mas as ondas a empurravam de volta. Até que afundou e mergulhou em um silêncio de morte. Acordou assustada e sem ar. Só foi conseguir dormir uma hora antes de o despertador tocar.

            No ônibus foi conversando com um rapaz conhecido de vista, ele também

trabalhava em Copacabana, entregava pizza. Era bonito demais, apesar da falta de dentes e da pouca atenção que dava a ela. Conversava atenta ao exterior, queria ler de novo o nome mar de histórias. Pensou em perguntar ao rapaz se ele sabia o que era, mas teve vergonha. Dessa vez o ônibus passou rápido e nem viu o letreiro, apesar de reconhecer o lugar. Mas não importava, um dia ia entrar lá, o lugar era dela. Riu do pensamento, estava feliz. Isso ela percebia.

            Sabia agora que não conhecia muita coisa. O mundo possível era muito

maior do que ela imaginara. Entendia mais as novelas, os filmes e tudo que via na televisão. O mais surpreendente foi descobrir que fazia parte da história, era uma personagem de verdade e não uma inventada por ela em seus devaneios. Eram confusos os pensamentos e  cada viagem que fazia, indo e voltando para o trabalho, virava uma aventura, um desbravamento. Tornara-se uma pessoa. Dona Valéria continuava demonstrando sua indiferença, mesmo não perguntando mais pela mãe dela e confiando, cada vez mais, mandando-a fazer compras.

Ao final do primeiro mês de Baixinha no lugar da mãe, dona Valéria pagou o

salário. Ao conferir em casa, a mãe notou que havia uma diferença de cem reais. Desconfiou da filha, inquiriu, acusou e fez Baixinha chorar. Então teria que questionar a patroa, dizer que estava faltando. Muito sem graça, com um medo danado, mesmo assim Baixinha perguntou e ouviu a resposta:

- Quando sua mãe voltar eu pago integral.

           Achou justo. A mãe não gostou, mas também não disse nada. Fazer o quê?



Tempos depois a viagem de ônibus já não tinha tanta graça. Nunca mais

pararam em frente ao Mar de Histórias. Passavam rápido, ou quando parava, não dava pra ver. Muitas vezes viajava em pé, no meio de uma gente sem modos, que não prestava atenção nela, pisando, empurrando, amassando. Mesmo assim seu coração disparava quando percebia a aproximação da rua do Mar de Histórias. Aliás, sua grande tristeza é que já não conseguia criar suas histórias. Não tinha mais tempo, nem cabeça. O trabalho era duro e cansativo. Já não assistia à televisão e nem sonhava mais. Cansada, deitava e dormia profundamente.

Um dia sua mãe morreu. De repente. Não acordou. Foi um dia tumultuado e muito

triste. Mas as coisas foram resolvidas de maneira rápida, a irmã foi com o filho morar na casa do namorado, um dos soldados do tráfico. O irmão passou a chefe da casa, exigindo mais capricho da Baixinha na limpeza e na comida.

Naquele mês, dona Valéria descontou o dia em que Baixinha não foi trabalhar, por

conta do enterro da mãe. Tudo bem, ela pensou, mas sentiu uma coisa que cada vez mais ocupava sua cabeça, e ela sabia muito bem que era raiva. O pior foi numa sexta-feira, véspera do aniversário de um dos filhos da patroa. Assim que chegou encontrou na cozinha uma moça bonita, uniformizada, preparando salgados e doces. Baixinha se empolgou pensando na festa. No final do dia dona Valéria veio falar com ela:

- Amanhã não precisa vir. Pode tirar de folga.

            Mesmo cansada não dormiu à noite. Sua cabeça não dava trégua, odiava aquela mulher com todas as forças. E os filhos, sempre rindo e falando nas costas, cuidando pra que ela ouvisse as gracinhas: “Lá vem a deixa que eu chuto.” “Ponto e vírgula, ponto e vírgula.” Diziam às gargalhadas. Seu coração apertado envenenava-se cada vez mais. Foi ver televisão na madrugada em busca do sono e de outras fantasias. Assistiu a um filme sem prestar atenção, a não ser quando a empregada resolveu matar a patroa. Já não discernia entre ficção e realidade. Era outra pessoa, todas as imperfeições do mundo caíram sobre seus ombros. Passou a agir pelo instinto de sobrevivência. Algo martelava seu cérebro, aconselhando a mudar o rumo das coisas. Se o mundo ria dela, se a vida a fez diferente, se a realidade a maltratava mudaria isso. Vingaria a própria existência.

            O dia a pegou na cozinha, olhos fixos na faca, grande e afiada, que usava para os cortes mais precisos. Não demorava a pegá-la pela dúvida, mas pela visão antecipada do que tinha que fazer. Colocou a faca na bolsa. Procurou entre as roupas que a irmã deixara para trás e escolheu a mais bonita, afinal ia a uma festa. Teve trabalho para ajustar o vestido bem maior do que seu pequeno número. Olhou-se no espelho mofado e odiou mais ainda a vida.

            O ônibus àquela hora, mais barulhento, estava cheio de pessoas alegres e descontraídas a caminho da praia. Mais do que nunca Baixinha se sentiu invisível. Conseguiu sentar junto à janela, mas não prestava atenção nas coisas que passavam rápidas. Estava determinada e um vazio ocupava sua cabeça, expulsando qualquer pensamento. Teve vontade de chorar sem saber muito bem por que. A raiva, o ódio, eram sentimentos recém-adquiridos, tão desconfortáveis. No entanto tinha noção que dali por diante, seriam companheiros inseparáveis. Não pensava no futuro, nas conseqüências, mas intuía coisas ruins. Algum dia por acaso vivera coisas boas? Aliás, na realidade, o que eram coisas boas?

            O trânsito era mais livre aos sábados, o ônibus seguia rápido e o motorista parecia entender a aflição de sua passageira, fazendo manobras arriscadas, costurando por entre os carros que passeavam no dia de sol. Vez por outra Baixinha enfiava a mão na bolsa e apertava a lâmina da faca a ponto de se cortar, o gesto revigorava sua tensão, a mantinha alerta e nutria sua raiva. Antevia a cena, ouvia gritos misturados com choros e podia ver muito sangue. Chegou a sentir o gosto do sangue da vítima, sem se dar conta que mordia o lábio.

O sinal fechou e o ônibus parou bruscamente. Assustada Baixinha olhou pela janela e lá estava de novo o letreiro Mar de Histórias. Riu internamente e pela primeira vez na sua vida repetiu um palavrão que seu irmão sempre dizia: “que merda”. O sinal demorou a abrir e seu coração deu um salto ao ver uma pessoa entrando pela porta de vidro. Levantou-se impulsionada pelo velho sonho e pela curiosidade até então esquecida. Saltou no próximo ponto e andou determinada, esquecendo-se da dor que recentemente voltara a sua perna doente.

Parou diante da porta. Leu acima da porta: Livraria Mar de Histórias. Não pensou em nada, era movida por uma emoção muito maior do que tudo que a levara até ali. Entrou.   

Deparou-se com centenas e centenas de livros e revistas, numa desordem fascinante.

Lombadas e capas multicoloridas, milhões de letras e palavras. Não sabia direito o que significava aquilo, mas seu coração bombava com tal vigor que sentia a cabeça dilatada, uma pressão na nuca e no peito, imergia em outro mundo, um mundo acolhedor, aconchegante. Passou as mãos pelos livros e olhou para as pontas dos dedos, emocionada, quase adivinhando o que havia dentro daquelas capas empoeiradas.

            O vendedor olhava desconfiado. Aproximara-se devagar e ao falar provocara nela um sobressalto.

            - Você veio pelo anúncio?

Baixinha não entendeu e o viu apontando para a vitrine. Nesse momento o vendedor foi solicitado por um cliente. Ela foi olhar o papel preso na vitrine. Viu letras escritas de um jeito muito estranho. Saiu para a calçada e aí sim, conseguiu ler juntando letra por letra: Precisa-se de faxineira. O vendedor voltou a falar com ela:

- Realmente está tudo muito sujo, empoeirado. Tem muito trabalho.

Ela olhou para o homem completamente careca na sua frente, ficou nervosa e teve uma vontade enorme de rir. Mal conseguiu falar.

- O que tem nesses livros?

- A grande maioria é romance, estórias de amor, essas coisas. - Respondeu o

vendedor, com simpatia. – O trabalho é diário e o salário não é grande coisa, mas também não é ruim. – Completou.

Baixinha olhava cada vez mais emocionada para tudo aquilo. Balbuciou:

            - Então isso é um mar de histórias? 

- É. Todas as histórias estão aí. – Disse o vendedor fazendo graça num gesto vago.

- Posso ler, eu não sei ler direito, - apressou-se em dizer Baixinha, - mas posso ler quando terminar a faxina?

O vendedor riu.

            - Pode, mas só se começar a trabalhar logo.

Ela riu e fez que sim com a cabeça, deixando escapar uma lágrima, que despistou.

            - Posso começar agora. – Quase gritou.

- Tem algum documento aí?

Ela enfiou a mão na bolsa para pegar a certidão de nascimento e seu dedo encontrou a lâmina afiada da faca.

Com o dedo sangrando passou o documento para o vendedor.

- Você vai gostar de trabalhar aqui é muito divertido. – Disse o homem se afastando.

- Vou dar meu sangue. – Respondeu Baixinha levando o dedo à boca, sentindo o gosto do próprio sangue.

 

Um comentário:

Marco Simas disse...
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