Em
2007, o grupo que compunha o coletivo Bagatelas!, se uniu pra fazer homenagem
as livrarias prediletas. Cada um escolheu a sua e escreveu o seu conto. O
projeto de um livro, com os contos, infelizmente ficou pelo caminho. Este é o
meu.
O
nome do sebo, assim que o vi pela primeira vez, fez com que eu entrasse na
loja. Embora sempre tenha frequentado sebos, talvez instigado pelo nome,
descobri uma nova sensação, como se realmente mergulhasse em um mar de
histórias.
O
texto é ficcional, claro, mas a personagem é verdadeira.
A
saga de Aniella, em Aqui Estamos Nós, volta em janeiro, depois do dia 15.
Desejo
a todos um 2012, cheio de boas histórias.
BAIXINHA
Era a primeira vez que saía da
comunidade. Não estava especialmente animada, já conhecia o mundo inteiro, ou
quase. A cidade então, nem se fala, sempre tão bem mostrada em novelas e nos
telejornais.
Nascera e crescera ali. Bem,
crescera era modo de dizer ficara baixinha igual à avó, e esse era seu apelido.
A paralisia infantil atrapalhou um monte de coisas, mas a principal delas foi a
freqüência na escola. Esforçou-se por um tempo, mas as dificuldades eram
enormes e os colegas não ajudavam, as brincadeiras eram agressivas e a deixava
mais aleijada do que era.
Aprendeu a
juntar as letras e se tivesse tempo conseguia ler algumas palavras. Mas nada
disso importava, ainda era nova, dezesseis anos, aprenderia tudo na marra. Uma
coisa que aprendeu nesse tempo foi lutar. Toda sua família lutava pela
sobrevivência com muita garra, ela especialmente.
Seu pai, Antonio da Silva, era um
homem trabalhador e responsável. Veio de Pernambuco ainda criança, com
trabalho, conseguiu estudar, construir sua casinha e criar a família. Foi morar
na favela da Rocinha por conta de uma oportunidade imperdível. Na mesma semana
em que foi empregado como faxineiro em um prédio de Copacabana, o porteiro
estava para se aposentar e voltaria com a família para o Rio Grande do Norte.
Por isso vendia a casa em condições excepcionais. Antonio negociou a casinha em
Nova Iguaçu e comprou a tranqüilidade de ficar bem mais perto do trabalho.
Trouxe a família e ali a Baixinha nasceu.
Quando tinha seis anos, Baixinha
viu seu pai ser morto. Em sua cabecinha o pai morreu como herói, defendendo a
família. Nunca entendeu os motivos fúteis que cercaram o crime. O pai fora à
birosca com a filha mais velha, treze anos, o corpo já forjado no trabalho duro
de lavar e passar. Um garoto, pouco mais velho do que a filha, armado com um
revólver e por um poder exacerbado, conferido pelo chefe do tráfico de drogas,
se engraçou com a menina e não teve dúvidas, nem culpas, em descarregar a arma
no pai que puxou a filha para tirá-la dali.
A mãe, a irmã e o irmão, mais
velhos, trabalhavam fora, saiam cedo e voltavam no final do dia. Baixinha
cuidava da casa e do filho pequeno da irmã. Limpava, cozinhava, inventava
coisas para distrair o pequeno e preparava o jantar, sempre servido à medida
que cada um ia chegando, a irmã era sempre a última. E quando chegava não
queria nada com o filho. O irmão tentava fazer o papel de chefe da família, o
que provocava muitas brigas. Baixinha assistia aquilo tudo e sentia-se a mãe do
sobrinho.
Nas tardes quentes e arrastadas,
contava histórias para distrair a criança. Tirava idéias da televisão e
inventava casos mirabolantes com gente bonita, rica, chique e sempre de bem com
a vida. Contava e sonhava, imaginando-se no lugar de várias personagens, sempre
as boazinhas, as que no final da novela venciam.
Seu universo se dividia entre o
mundo da televisão e a realidade atrás da porta. Sempre que precisava sair de
casa para buscar alguma coisa na birosca, ficava apreensiva. Ainda que não se
lembrasse mais com clareza da morte do pai sentia um medo inexplicável. Não
gostava do que via e nem do que ouvia apesar de ninguém falar com ela.
Aparentemente nem a notavam, mas ela sentia hostilidade na indiferença, como se
não fizesse parte, não integrasse a comunidade. Por isso voltava rápido para
seu mundo, sua vida de responsabilidades com a casa, com o sobrinho, um mundo
só dela, de pura fantasia.
Uma noite, a mãe chegou muito
mais tarde do trabalho. Um fato nunca antes acontecido. Baixinha já estava à
beira do desespero, sem notícias. Na casa não havia telefone e só os irmãos
tinham celular de cartão. A comunicação só acontecia de viva voz. A mãe já uma
senhora de setenta anos, passou mal e a patroa a levou na emergência do
hospital e a deixou lá. Depois de horas aguardando na fila, fora examinada pelo
médico e aconselhada a ficar de repouso por alguns dias e a fazer uma rigorosa
dieta e levar uma vida mais saudável, a pressão estava muito alta. Era
importante fazer um exame completo de sangue.
- Liguei de lá mesmo para a dona
Valéria e disse que o médico passou essa receita. – Contou para os filhos que a
cercavam na mesa. – Mas ela não pode ficar sem ninguém lá, tem muito serviço.
Mas eu não to agüentando não. Passei muito mal. Aí eu disse pra ela que ia
mandar minha filha no meu lugar por uns dois dias enquanto eu descanso um
pouco.
Os três filhos se entreolharam. Quem iria substituir a mãe?
Os olhares caíram sobre a Baixinha. Ela sorriu encarando como brincadeira.
Mas como,
se nunca saíra da Rocinha? Não fazia a menor idéia do mundo lá fora. Nunca a
levavam a lugar nenhum, nem a praia que os irmãos iam com frequência aos
domingos.
- É minha
filha, nós não pode ficar sem o dinheiro e se num for ninguém a dona Valéria
arruma outra. Sua irmã tem o trabalho dela, e eu posso ficar com o neném, isso
eu posso.
Não tinha contestação, era assim
e pronto. A rotina voltou ao normal. Baixinha serviu a janta, lavou e secou os
pratos e as panelas, ajeitou as coisas, trocou o pequeno, fez a mamadeira e foi
para cama. Nessa noite nem inventou história pra dormir, sequer se imaginou
como a moça pobre que chegava na cidade grande a procura de parentes e de um
jeito de ganhar a vida. Sentia-se exausta e com o aperto no peito, o mesmo que
sentia quando ia à birosca.
De manhã bem cedo, ninguém falou
nada desnecessário. A mãe deu a Baixinha o dinheiro da passagem e ensinou qual
o ônibus pegar. Explicou, com detalhes, como chegar no apartamento de dona
Valéria, dando as referências.
- Fala com o trocador do ônibus
que você quer saltar perto da rua Hilário de Gouvêa. É perto do ponto.
Assim dito, foi cuidar do neto.
Baixinha pegou a bolsa da mãe,
conferiu o dinheiro para a ida e a volta, olhou sua certidão de nascimento, que
via pela primeira vez e conseguiu distinguir seu nome escrito em letra mais
escura. Leu baixinho e estranhou o som:
- Maria das Dores Silva.
Deu uma última olhada para a
casa e saiu.
Arrastou o pezinho torto em
direção ao ponto de ônibus, muito além dos limites com os quais estava
acostumada. Manteve a cabeça baixa e nos raríssimos momentos de silêncio podia
ouvir o próprio coração.
Pensava enquanto olhava de través
as pessoas que passavam por ela: “já conheço o mundo inteiro. A cidade então,
conheço tudo. Já vi na televisão, não tem diferença”.
Lembrou-se da moça da novela e
por alguns segundos levantou a cabeça e respirou fundo, sentindo um outro
estranho sentimento, que não tinha idéia que se chamava orgulho, e era bom. Ao
cruzar com o olhar de um homem que estava na janela de uma casa, voltou a
baixar a cabeça e a ouvir o coração.
Entrou no ônibus, lotado e
barulhento. As pessoas falavam alto e riam, e Baixinha ficou um pouco
atordoada. Mas assim que o ônibus começou a rodar descobriu uma coisa nova. Um
mundo novo passava diante dela. Era mais rápido e mais vivo do que a televisão.
Uma sucessão de imagens e cores, tudo em movimento mudando constantemente de
muro para casa, para mar, para céu, carros, gente, quanta coisa.
E o ônibus se meteu por umas ruas
cheias de lojas com coisas diferentes, panos, roupas, televisões, comidas. Tudo
passava rápido, mal dando tempo de reter as informações. Quando parava,
Baixinha ficava deslumbrada com tanta gente atravessando de um lado para o outro,
parecia que estavam perdidas sem saber para onde ir.
Bem mais adiante tudo foi ficando
mais lento. O ônibus começou a rodar aos trancos. Às vezes corria, outras vezes
andava muito devagar, até que parou no meio da rua, numa rua em decida, e
podia-se ver lá na frente um pedacinho do mar. Baixinha começou a olhar as
fachadas das lojas. Arriscou-se a ler os nomes, alguns inelegíveis, que ela
logo entendeu ser outra língua. Mas em uma delas estava escrito uma coisa que a
fez sentir um frio na barriga, uma emoção única. Leu com grande dificuldade,
mas conseguiu entender. Estava escrito: Mar de Histórias.
O ônibus andou e Baixinha quase
arrumou um torcicolo tentando ver o que havia
dentro da loja. O trânsito se mexeu de repente, não conseguiu ver nada.
Seguiu repetindo o nome Mar de Histórias, e nada mais a interessou. Ficou
atenta apenas na indicação do trocador e saltou no ponto indicado.
Dona Valéria não gostou muito do
que viu a sua porta. Acostumara-se com os serviços da mãe da Baixinha, que já
trabalhava pra ela há mais de dez anos. Como uma aleijadinha daria conta do
recado. O apartamento era grande, os filhos pequenos e bagunceiros e ela e o
marido gostavam de tudo muito limpo e organizado. A comida tinha que ser feita
no dia e ainda precisava comprar coisas no supermercado.
Demonstrou seu descontentamento e
passou as ordens, de um jeito seco. E era muita coisa mesmo para fazer.
Baixinha nem se preocupou, trabalho era como outras coisas que não podia deixar
de fazer, como respirar e comer. Apanhou o material de limpeza e começou a
faxina. Uma coisa boa fazia seu peito arder toda vez que se lembrava do nome
escrito numa placa grande sobre a loja, Mar de Histórias, repetia e vinha a
dúvida: teria lido direito. Foi tão rápido e com tanta coisa acontecendo a sua
volta. Ainda bem que voltaria à casa de dona Valéria no outro dia, poderia ler
de novo e confirmar. Mas o que seria aquilo? O que poderia ter dentro de um
lugar chamado Mar de Histórias? Todas essas questões ocupavam seus pensamentos
e o dia passava e ela cumpria as tarefas.
Dona Valéria saiu logo após dar
às ordens e só voltaria no final do dia, já com os filhos. Queria tudo muito
bem arrumado e a comida prontinha. O marido chegava do trabalho muito cansado e
gostava de comer antes do telejornal. Baixinha ouviu e pensou: “esse povo rico
é igual a gente, sem tirar nem por.” Fora o tamanho do apartamento, as coisas
de luxo, como o sofá branquinho e enorme na sala, o resto era igual também,
pior, nem vista tinha. Todas as janelas davam pra alguma outra janela. O
barraco pelo menos tinha um visual de fotografia. E ela limpava, arrumava,
espanava, ajeitava e nem precisava prestar muita atenção no que fazia, podia
pensar e tentar adivinhar o significado do nome. Mar ela sabia muito bem o que
era, via todos os dias lá do morro. Nunca entrou na água, mas prestava atenção
na conversa dos outros e sabia como era, o sal, as ondas. História também
sabia, não era o que ela vivia inventando para contar ao sobrinho? Agora, como
seria um mar de histórias? Sua cabeça chegava a doer em busca de uma explicação
plausível.
Muito antes da hora marcada já
estava com tudo pronto. E quer saber? Ficou tudo muito melhor e mais arrumado.
Sua mãe era boa faxineira, mas já estava velha e cansada. Sentou na sala para
esperar. Ficou olhando para uma televisão estranha, muito grande e reta.
Aproximou-se para ver melhor, era engraçada, não tinha aquela caixa atrás. Não
achou como ligar. Sobre a mesinha de centro viu quatro controles remotos, de
formatos estranhos. Resolveu não mexer. Não era direito.
Na hora marcada dona Valéria
chegou com os filhos. Dois meninos lindos e curiosos. Olhavam pra ela rindo meio
disfarçado toda vez que ela andava. Olhavam para seu pezinho torto e a perna
mais fina. O maior de nove anos era do tamanho dela. Achou os meninos educados
e nem ligou para os olhares, estava acostumada a ser diferente. “Menino rico
raramente vê gente aleijada”. Conversou com eles sobre a escola e eles
responderam rindo, eram realmente muito educados. Dona Valéria passou a casa em
revista, sempre com Baixinha a segui-la esperando alguma reclamação. Mas a
patroa parecia satisfeita, mesmo não dizendo nada. Foram à cozinha. Destampou
as panelas, cheirou, passou pela mesa, trocou alguns talheres de lugar e
finalmente olhou assim meio rápido para a Baixinha e disse:
- Você vem amanhã na mesma hora,
sem atrasos, por favor. E diz pra sua mãe procurar o médico e descansar o
máximo possível.
E nada mais.
Os meninos
riram, e Baixinha saiu arrastando o pezinho. Segurou o medo na
hora de entrar no elevador, que a deixara enjoada quando
subiu. Lá no fundo uma sensação diferente a fazia sentir-se bem, nunca fora
elogiada, experimentava a sensação boa do dever cumprido.
No
ônibus ficou atenta a janela. Será que passaria de novo em frente ao
Mar de Histórias?
Foi
uma noite longa. Deitou-se tarde, depois de lavar os pratos e panelas e
arrumar a cozinha. Não falou com ninguém. Quando chegou sua
mãe assistia à novela, o menino já dormia e os irmãos haviam saído. Assim que
deitou dormiu, mas teve um sonho esquisito, estava no mar e tentava contar uma
história para os filhos da patroa, eles riam e nadavam pra longe dela. Tentava
alcançá-los, mas as ondas a empurravam de volta. Até que afundou e mergulhou em
um silêncio de morte. Acordou assustada e sem ar. Só foi conseguir dormir uma
hora antes de o despertador tocar.
No
ônibus foi conversando com um rapaz conhecido de vista, ele também
trabalhava em Copacabana, entregava pizza. Era bonito
demais, apesar da falta de dentes e da pouca atenção que dava a ela. Conversava
atenta ao exterior, queria ler de novo o nome mar de histórias. Pensou em
perguntar ao rapaz se ele sabia o que era, mas teve vergonha. Dessa vez o
ônibus passou rápido e nem viu o letreiro, apesar de reconhecer o lugar. Mas
não importava, um dia ia entrar lá, o lugar era dela. Riu do pensamento, estava
feliz. Isso ela percebia.
Sabia
agora que não conhecia muita coisa. O mundo possível era muito
maior do que ela imaginara. Entendia mais as novelas, os
filmes e tudo que via na televisão. O mais surpreendente foi descobrir que
fazia parte da história, era uma personagem de verdade e não uma inventada por
ela em seus devaneios. Eram confusos os pensamentos e cada viagem que fazia, indo e voltando para o
trabalho, virava uma aventura, um desbravamento. Tornara-se uma pessoa. Dona
Valéria continuava demonstrando sua indiferença, mesmo não perguntando mais
pela mãe dela e confiando, cada vez mais, mandando-a fazer compras.
Ao final do primeiro mês de
Baixinha no lugar da mãe, dona Valéria pagou o
salário. Ao conferir em casa, a mãe notou que havia uma
diferença de cem reais. Desconfiou da filha, inquiriu, acusou e fez Baixinha
chorar. Então teria que questionar a patroa, dizer que estava faltando. Muito
sem graça, com um medo danado, mesmo assim Baixinha perguntou e ouviu a
resposta:
- Quando sua mãe voltar eu pago
integral.
Achou
justo. A mãe não gostou, mas também não disse nada. Fazer o quê?
Tempos depois a viagem de ônibus
já não tinha tanta graça. Nunca mais
pararam em frente ao Mar de Histórias. Passavam rápido, ou
quando parava, não dava pra ver. Muitas vezes viajava em pé, no meio de uma
gente sem modos, que não prestava atenção nela, pisando, empurrando, amassando.
Mesmo assim seu coração disparava quando percebia a aproximação da rua do Mar
de Histórias. Aliás, sua grande tristeza é que já não conseguia criar suas
histórias. Não tinha mais tempo, nem cabeça. O trabalho era duro e cansativo.
Já não assistia à televisão e nem sonhava mais. Cansada, deitava e dormia
profundamente.
Um dia sua mãe morreu. De
repente. Não acordou. Foi um dia tumultuado e muito
triste. Mas as coisas foram resolvidas de maneira rápida, a
irmã foi com o filho morar na casa do namorado, um dos soldados do tráfico. O
irmão passou a chefe da casa, exigindo mais capricho da Baixinha na limpeza e
na comida.
Naquele mês, dona Valéria
descontou o dia em que Baixinha não foi trabalhar, por
conta do enterro da mãe. Tudo bem, ela pensou, mas sentiu
uma coisa que cada vez mais ocupava sua cabeça, e ela sabia muito bem que era
raiva. O pior foi numa sexta-feira, véspera do aniversário de um dos filhos da
patroa. Assim que chegou encontrou na cozinha uma moça bonita, uniformizada,
preparando salgados e doces. Baixinha se empolgou pensando na festa. No final
do dia dona Valéria veio falar com ela:
- Amanhã não precisa vir. Pode
tirar de folga.
Mesmo cansada não dormiu à noite. Sua
cabeça não dava trégua, odiava aquela mulher com todas as forças. E os filhos,
sempre rindo e falando nas costas, cuidando pra que ela ouvisse as gracinhas:
“Lá vem a deixa que eu chuto.” “Ponto e vírgula, ponto e vírgula.” Diziam às
gargalhadas. Seu coração apertado envenenava-se cada vez mais. Foi ver
televisão na madrugada em busca do sono e de outras fantasias. Assistiu a um
filme sem prestar atenção, a não ser quando a empregada resolveu matar a
patroa. Já não discernia entre ficção e realidade. Era outra pessoa, todas as
imperfeições do mundo caíram sobre seus ombros. Passou a agir pelo instinto de
sobrevivência. Algo martelava seu cérebro, aconselhando a mudar o rumo das
coisas. Se o mundo ria dela, se a vida a fez diferente, se a realidade a
maltratava mudaria isso. Vingaria a própria existência.
O dia a
pegou na cozinha, olhos fixos na faca, grande e afiada, que usava para os
cortes mais precisos. Não demorava a pegá-la pela dúvida, mas pela visão
antecipada do que tinha que fazer. Colocou a faca na bolsa. Procurou entre as
roupas que a irmã deixara para trás e escolheu a mais bonita, afinal ia a uma
festa. Teve trabalho para ajustar o vestido bem maior do que seu pequeno
número. Olhou-se no espelho mofado e odiou mais ainda a vida.
O ônibus àquela
hora, mais barulhento, estava cheio de pessoas alegres e descontraídas a
caminho da praia. Mais do que nunca Baixinha se sentiu invisível. Conseguiu
sentar junto à janela, mas não prestava atenção nas coisas que passavam
rápidas. Estava determinada e um vazio ocupava sua cabeça, expulsando qualquer
pensamento. Teve vontade de chorar sem saber muito bem por que. A raiva, o
ódio, eram sentimentos recém-adquiridos, tão desconfortáveis. No entanto tinha
noção que dali por diante, seriam companheiros inseparáveis. Não pensava no
futuro, nas conseqüências, mas intuía coisas ruins. Algum dia por acaso vivera
coisas boas? Aliás, na realidade, o que eram coisas boas?
O trânsito
era mais livre aos sábados, o ônibus seguia rápido e o motorista parecia
entender a aflição de sua passageira, fazendo manobras arriscadas, costurando
por entre os carros que passeavam no dia de sol. Vez por outra Baixinha enfiava
a mão na bolsa e apertava a lâmina da faca a ponto de se cortar, o gesto
revigorava sua tensão, a mantinha alerta e nutria sua raiva. Antevia a cena,
ouvia gritos misturados com choros e podia ver muito sangue. Chegou a sentir o
gosto do sangue da vítima, sem se dar conta que mordia o lábio.
O sinal fechou e o ônibus parou bruscamente. Assustada
Baixinha olhou pela janela e lá estava de novo o letreiro Mar de Histórias. Riu
internamente e pela primeira vez na sua vida repetiu um palavrão que seu irmão
sempre dizia: “que merda”. O sinal demorou a abrir e seu coração deu um salto
ao ver uma pessoa entrando pela porta de vidro. Levantou-se impulsionada pelo
velho sonho e pela curiosidade até então esquecida. Saltou no próximo ponto e
andou determinada, esquecendo-se da dor que recentemente voltara a sua perna
doente.
Parou diante da porta. Leu acima
da porta: Livraria Mar de Histórias. Não pensou em nada, era movida por uma
emoção muito maior do que tudo que a levara até ali. Entrou.
Deparou-se com centenas e
centenas de livros e revistas, numa desordem fascinante.
Lombadas e capas multicoloridas, milhões de letras e
palavras. Não sabia direito o que significava aquilo, mas seu coração bombava
com tal vigor que sentia a cabeça dilatada, uma pressão na nuca e no peito, imergia
em outro mundo, um mundo acolhedor, aconchegante. Passou as mãos pelos livros e
olhou para as pontas dos dedos, emocionada, quase adivinhando o que havia
dentro daquelas capas empoeiradas.
O vendedor
olhava desconfiado. Aproximara-se devagar e ao falar provocara nela um
sobressalto.
- Você veio
pelo anúncio?
Baixinha não entendeu e o viu
apontando para a vitrine. Nesse momento o vendedor foi solicitado por um
cliente. Ela foi olhar o papel preso na vitrine. Viu letras escritas de um
jeito muito estranho. Saiu para a calçada e aí sim, conseguiu ler juntando letra
por letra: Precisa-se de faxineira. O vendedor voltou a falar com ela:
- Realmente está tudo muito sujo,
empoeirado. Tem muito trabalho.
Ela olhou para o homem
completamente careca na sua frente, ficou nervosa e teve uma vontade enorme de
rir. Mal conseguiu falar.
- O que tem nesses livros?
- A grande maioria é romance,
estórias de amor, essas coisas. - Respondeu o
vendedor, com simpatia. – O trabalho é diário e o salário
não é grande coisa, mas também não é ruim. – Completou.
Baixinha olhava cada vez mais emocionada para tudo aquilo.
Balbuciou:
- Então
isso é um mar de histórias?
- É. Todas as histórias estão aí.
– Disse o vendedor fazendo graça num gesto vago.
- Posso ler, eu não sei ler
direito, - apressou-se em dizer Baixinha, - mas posso ler quando terminar a
faxina?
O vendedor riu.
- Pode, mas
só se começar a trabalhar logo.
Ela riu e fez que sim com a
cabeça, deixando escapar uma lágrima, que despistou.
- Posso
começar agora. – Quase gritou.
- Tem algum
documento aí?
Ela enfiou a mão na bolsa para
pegar a certidão de nascimento e seu dedo encontrou a lâmina afiada da faca.
Com o dedo sangrando passou o
documento para o vendedor.
- Você vai gostar de trabalhar
aqui é muito divertido. – Disse o homem se afastando.
- Vou dar meu sangue. –
Respondeu Baixinha levando o dedo à boca, sentindo o gosto do próprio sangue.
Um comentário:
Postar um comentário