terça-feira, 30 de outubro de 2012

RESISTÊNCIA Livro 2


Da trilogia

AQUI ESTAMOS NÓS...






1
O interfone tocou na portaria do edifício Azul Oceânico, um dos prédios que se erguem no condomínio mais luxuoso da avenida em frente à praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Da cobertura, brinca-se, é possível ver a costa africana em frente.
Seu Aníbal acabara de assumir o plantão da manhã. Ajudava a empregada do apartamento 901 a colocar as compras no elevador de serviço, quando ouviu a campainha estridente do interfone.
Desculpou-se e arrastou sessenta e oito anos de vida, e trinta e quatro de trabalho como porteiro, vinte e um dos quais só naquele condomínio, aonde chegou antes mesmo de os prédios serem habitados. Gostava de se gabar, cheio de orgulho, que durante todos esses anos nunca tivera nenhuma ocorrência em seus serviços. Para não dizer nunca, uma palavra tão radical, uma vez, ainda no início da profissão, alguém arranhara o carro do filho do Síndico, em noite que o serviço era seu. Para não ficar mal na história, investigou e descobriu que um entregador de supermercado foi o autor do sinistro. O fato acabou por contribuir com sua ascensão a porteiro chefe, com direito a uma quitinete no prédio I.
Primeiro sentou-se na cadeira, de onde dominava a entrada de pedestres e veículos. Respirou fundo em busca do oxigênio que já não chegava com facilidade aos pulmões comprometidos por anos de nicotina. Passou os olhos pelo monitor de vídeo, com imagens das áreas internas do condomínio. Só então pegou o interfone, que continuava a estrilar em desespero. Atendeu.
A voz pesada e rouca foi imediatamente identificada pelo morador.
— Portaria! Aníbal falando.
Na outra ponta a voz tinha urgência; carregada de espanto:
— Uma mulher caiu da janela, pelo amor de Deus! Bem ali no jardim...
O furgão da RTC, Rede de Televisão Carioca, estacionou em frente ao prédio, minutos depois da chegada da polícia, e pouco antes da equipe dos bombeiros. A primeira a saltar foi a produtora Sonia Gomes.
Pequena e ágil, logo esquadrinhou o local e passou as ordens ao cinegrafista Jacques Viana, que prontamente retirava o equipamento do porta-malas, com a ajuda do auxiliar José Luiz.
Dentro do furgão Antonio Más, terminava a troca de e-mails com uma de suas fontes, em seu Iphone, ao mesmo tempo em que teclava furiosamente no MacBook para fechar a redação do texto que o guiaria em outro trabalho, atravessado pelo acontecimento no bairro nobre, no condomínio classe A. Em seguida desceu para trocar ideias com a produtora Sonia Gomes, que a esta altura já apurara os primeiros dados do caso e passara a ele, pelos garranchos escritos na folha do seu manjado bloco de notas, como sempre, sem maiores conversas. Folha arrancada, entregue, e saída rápida para estruturar a transmissão da matéria, ao vivo, em edição especial do jornalismo da emissora, o Plantão da Cidade.
Antonio Más, habituado a decifrar os rabiscos de Sonia Gomes, captou a essência do caso e começou a formatar em sua cabeça o texto de abertura.
Corriam contra o relógio para serem o primeiro órgão noticioso a divulgar os acontecimentos. Era o diferencial da equipe do Plantão, sempre rodando pela cidade, contavam com uma extensa rede de colaboradores amadores, atentos aos fatos, comunicando-se entre si, via celular, twitter e rádio. Na maioria das vezes chegavam rápido aos locais informados. Se, por acaso a distância, ou o trânsito pesado, impedisse a breve locomoção da Van, entrava em cena um dos quatro “Motofocas”, jovens jornalistas contratados com suas motocicletas, a fim de cumprirem este papel. Deslocavam-se com eficiência, apuravam os fatos, passavam diretamente para o rádio do furgão. De posse dos dados Antonio Más fazia entradas a caminho do local, muitas vezes, havendo condições técnicas, dialogava ao vivo com o Motofoca.
O Plantão da Cidade era recente, pouco mais de um ano no ar, mas já colecionava prêmios, matérias em revistas e jornais, além de comentários favoráveis. A chamada para as intervenções, dizia: “Quer saber o que vai pela cidade?, se liga no Plantão”.
Com a câmera enquadrando sua figura em plano americano, ou seja, do joelho para cima, tendo como fundo o conjunto de prédios do condomínio, Antonio Más fez sua primeira entrada, depois de chamado pelo âncora diretamente dos estúdios.
— Morador do Condomínio de luxo, Azul Oceânico, seu Eugênio Figueira de Mello, aposentado de setenta e sete anos, caminhava em sua varanda, quando viu passar voando, o que lhe pareceu ser uma mulher. Confirmou ao chegar ao parapeito a tempo de ver a terrível aterrissagem. Como não é normal, e nunca será, alguém sair voando de casa, chamou o porteiro. Ainda não podemos dizer muita coisa, apenas que a vítima era moradora do décimo segundo andar, informou o porteiro. Ainda não se sabe se caiu ou
foi jogada. O fato aconteceu há não mais do que vinte minutos. — Valorizou. — Nesse momento a equipe de resgate dos bombeiros já chegou ao local. A polícia técnica está a caminho e nós vamos entrar na cena pra apurar todos os dados. Enquanto esperam por novas e atualizadas notícias, conheçam um pouco do cenário do acontecimento.
De maneira ágil, a equipe comandada pelo editor Vander Régis, colocou no ar imagens tiradas do Google, com informações sobre o bairro, o condomínio e o prédio em questão.
Em um grande apartamento adaptado para servir de escritório à Agência Rian, no bairro do Flamengo na zona sul do Rio de Janeiro, Joele Rocha, jornalista, acabara de ver o Plantão da Cidade e de receber um alerta do twitter em seu celular.
— Esse cara, Antonio Más, é impressionante. Nem bem entrou ao vivo na TV, já twitou sobre a matéria. — Comentou com Elfi Danovic, sua sócia na Agência e vizinha de mesa. — Acho que temos alguma coisa aqui.
— O que foi? — Quis saber Elfi, envolvida com atualizações do site.
— Olha só. Sabe aquele condomínio Azul Oceânico na Barra.
— O endereço dos famosos?
— Mais de políticos do que de artistas. Famosos tanto quanto. Parece que uma mulher caiu do décimo segundo andar, ou foi jogada.
— Viu no Plantão? Já se sabe quem é?
— Ainda não. Acabou de rolar.
— Começaram cedo hoje. — Disse Elfi Danovic enquanto digitava com agilidade e precisão impressionantes. — Rapidinho entro aqui no site da Prefeitura, quero ver os IPTUs e seus sobrenomes.
— Vou ficar ligada no Plantão da Cidade, me diz o que descobrir.
— Claro gata. Pelo endereço gente anônima é que não é. Falta pouco. Os caras instalaram um novo código de segurança infalível, segundo disseram, lembra? Vamos ver quanto tempo resiste. Ops, já entrei, nem dois minutos de resistência. Ah, mas olha só, tem um spy metido a fofoqueiro aqui, louco pra saber quem é o invasor. Aqui não bonitinho. Vou te deixar maluco.
— Ei — cobrou Joele Rocha em tom de brincadeira —, já tem mais de cinco minutos, perdeu essa.
— Que nada, já tenho tudo aqui, só vou mandar o amiguinho aqui caçar coelho na cartola de outro. Pronto. Como previsto, décimo segundo andar, dois apartamentos, 1201, senhor Juarez Fernandes de Castro. Peraí, um minuto, quem é o boneco? Taí o que você queria: Deputado Federal por São Paulo, segundo mandato.
— Aqui ainda não diz de qual apartamento foi.
— O 1202 é de uma senhoura que responde pelo nome de Betina Kipfer. Nome alemão ou suíço.
— Quem é a individua? Conhecida?
— Nada demais, pelo menos nenhuma fofoca, nem aparições em salões nobres da cidade. Nada registrado.
— Que curioso. Proprietária de um apartamento desses?
— Mais estranho ainda você vai achar agora. Sabe qual é a idade de dona Betina?
— Diga.
— Vinte e nove anos.
— Uau! Tem foto aí?
— Nada. Misteriosa a moça, viu. Só encontrei o nome por causa do registro de imóveis. Diz também que a cidade natal dela é Sombrio, cara que lugar pra nascer, em Santa Catarina. Divorciada, profissão professora.
— Êpa, divorciada é? É aí que se explica muita coisa. Só assim dá pra imaginar uma professora morando em um dos apartamentos mais caros da cidade. Vai entrar de novo o Plantão. — Joele ajeitou os fones nos ouvidos.
— Apura aí que vou continuar o que estava fazendo. Tenho dois dias de atraso. — Disse Elfi Danovic. Minimizou a pesquisa e abriu a tela com os complicados gráficos em que trabalhava.
— CQD — como queríamos demonstrar, expressão matemática que Joele Rocha sempre usava —, quem caiu ou foi jogada do décimo segundo andar, foi a professora primária, nascida em Sombrio, diz aqui Antonio Más, o nosso repórter predileto. Esse cara consegue fazer piadinha de cada coisa...
— Tipo o quê? — Arguiu Elfi, sem tirar os olhos da tela de seu MAC.
— Perguntou o que e a quem teria vindo ensinar uma professora da distante cidade de Sombrio, em um apartamento de alto luxo encravado no reduto de classe média alta do Rio de Janeiro. E arremata: Que tipo de matéria ela domina?
— Você acha esse cara legal? — Perguntou Elfi Danovic afastando um pouco o rosto da tela. — Acho ele meio esquisito. Machista, sei lá.
— Às vezes também acho. Mas não dá pra negar que ele faz um jornalismo diferente, sem a caretice que assola a maioria dos canais de TV. Tira o tom dramático, apelativo, sem tirar a seriedade.
— Não dá pra brincar com um suicídio, ou assassinato, e nesse caso ele está é prejulgando a moça. — Replicou Elfi.
— Espera aí Elfi. Sem essa de politicamente correto. Pensa bem, uma pobre e inocente garota ela não é. Vamos ver o que será apurado. E o Antonio Más diz coisas que as pessoas pensam, presta atenção. — Defendeu Joele Rocha.
— Sei não, essa aí é mais uma vítima, isso sim. Sua corporativista.
— Então fica aí que vou à luta. Vamos ver o que isso aí vai render...
— Vem cá. — Elfi girou sua cadeira para encarar a sócia. — Hoje é só citação, informação, né?
— Claro. Vou apurar. Pela hora — ela olhou no canto da tela de seu notebook — quase onze horas, isso aí vai render o dia todo. Ligo mais tarde.
Joele desligou o computador portátil e o enfiou na mochila, sempre abarrotada. Foi até a mesa de Elfi e lhe deu um beijo no alto da cabeça.
— Depois dá uma olhada na moçada da outra sala. Confesso que estou morrendo de curiosidade pra ver o novo layout. Qualquer coisa me liga. Beijo gata.
Aniella Shimura se despediu de sua advogada, Ruth Monteiro e entrou no elevador. Foi cumprimentada pelo ascensorista e respondeu distraída. Sua cabeça estava cheia. A reunião fora convocada pela advogada com o objetivo de acertarem os últimos detalhes de um empreendimento que Aniella pretendia fazer à distância, em uma cidadezinha do interior do Estado de Mato Grosso. Não por acaso sua cidade natal, de onde saíra há quase cinco anos e nunca mais colocara seus pés, embora fizesse visitas sentimentais ao passado recente, principalmente nas madrugadas insones e solitárias.
Ruth Monteiro argumentara que qualquer negócio só pode dar certo se administrado de perto, por quem investe. E antes de qualquer atitude, já que não tinha ninguém de confiança por lá, ela deveria ir ao local e estudar melhor os planos, ver o que queria, para aí sim implementar o interesse. Ouviu as ponderações da cliente, mesmo assim sustentava que negócios e sentimentos são por princípio, antagônicos.
Entendia as razões como amiga, mas não podia, como advogada e conselheira, deixar de levantar a questão. No entanto, dado o conselho, cabia-lhe acatar as vontades da cliente, que lhe pagava muito bem.
Intimamente Aniella Shimura reconhecia a preocupação da advogada. Achava mesmo que como negócio, o investimento era péssimo, sem futuro, pelo menos na teoria. Porém não estava preocupada com lucros e resultados positivos. Não era isso em absoluto. O que adiantava ter o dinheiro, todo aquele dinheiro se não pudesse fazer um reparo em algo que há tanto tempo corroía seu espírito, tirava-lhe a alegria mesmo nos melhores momentos. Por vezes se pegava pensando se não estava buscando vingança, ou uma maneira de mostrar que dera a volta por cima. Transformara-se e queria transformar pessoas, vidas, o lugar. Tudo bem seria um péssimo investimento, mas teria o doce sabor da vingança, e quem, em sã consciência, deixaria de fazer o mesmo, com os recursos que conquistara? Ia fazer e pronto. Ganharia o mais importante, o prazer de realizar um sonho.
Desceu ao estacionamento subterrâneo, sob a Praça Paris. Pegou o carro, pagou, não sem reclamar do preço, um absurdo. Ao sair para o trânsito, tranquilo àquela hora, no aterro do Flamengo, seu celular tocou. Acionou o viva voz e atendeu. Era Joele Rocha.
— Oi Joele, tudo bem?
— Tudo Ane, e você?
— Às voltas com reuniões, mas tudo bem. Diga aí.
— Acho que temos um novo caso. Lá na Barra da Tijuca. Estou indo pra lá.
— Está dirigindo?
— Estou.
— Já falei pra você instalar um viva voz....
— É rapidinho. Uma moça, jovem, vinte nove anos, caiu, se jogou, ou foi jogada do décimo segundo andar, naquele condomínio de luxo, Azul Oceânico. Liga o rádio, tem repercussão do caso. Depois falamos.
— Certo. Beijo.
Desligaram os telefones e Aniella ligou o rádio. Esperou um pouco e logo uma repórter foi chamada a dizer sobre o andamento do mistério do Azul Oceânico.
Ouviu tudo com a maior atenção. Colocaram no ar breves depoimentos do porteiro chefe do prédio, do primeiro policial que chegou ao local e do morador, um
senhor aposentado que passou pelo dissabor de presenciar a queda. Anotou mentalmente o nome da moça.
Passaria em casa rapidamente, precisava se trocar apanhar alguns objetos, e seguiria para o local.
Todos os seus sentidos entraram em alerta. O que quer que tenha provocado a queda da moça chamada Betina Kipfer, seria ruim. Ela iria descobrir.

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