terça-feira, 10 de outubro de 2006

Continuando...

Vamos continuar com o romance. Para esclarecer: os originais estão com a editora e provavelmente será lançado no final do ano.
Estou postando aqui partes editadas que não comprometem o entendimento e fica mais fácil de ler na tela. Vamos em frente.

2

Silva se colocou a disposição dos colegas para qualquer ação. Desculpou-se com alguns, pois ele próprio estava às voltas com casos complicados em sua delegacia.
Como estava próximo da décima primeira, e estava com o carro na oficina, resolveu ir a pé. Sempre evitava andar pelas ruas àquela hora, quando fervilhavam de gente. Não se podia caminhar em linha reta e era preciso ficar atento para não se tornar vítima de punguistas e malandros que eram especialistas em reconhecer os distraídos que caminhavam com a cabeça nas nuvens.
Apesar disso seus pensamentos pulavam das boas lembranças da noite, para os problemas que o dia prometia. Foi lentamente pela calçada lotada de gente e camelôs. Àquela hora da manhã o calor já era forte, e nem uma brisa para amenizar.
A agitação parecia maior, por ser véspera de feriadão. Todo mundo querendo se livrar o quanto antes dos afazeres e correr para algum lugar e não fazer nada.
Ninguém dizia que era um policial. Parecia mais um turista misturado ao agito que o verão transformava a cidade. Em geral estava metido em alguma complicação. Seu mau humor e seus métodos de trabalho, nada ortodoxos, tinham feito sua fama, mas só ele sabia a que preço.
Descobriu que queria ser policial por volta dos quinze anos, quando viu nos filmes americanos o quanto os detetives podiam ser cínicos, desiludidos e, freqüentemente, solitários e inseguros, fortemente ligados ao passado e indiferentes quanto ao futuro, porém sempre charmosos e viris. Mas foi nas letras de Dashiell Hammett, especificamente em O Falcão Maltês, que se viu descrito como nem ele ousara imaginar.
Transformara-se em um policial durão, que impunha respeito e não fazia concessão a nada nem a ninguém. Uma vez desafiado a solucionar um caso, sua obstinação não conhecia limites. Encarnava a lei, e não raro, se sentia acima dela cumprindo seu dever, para o qual era pago pela sociedade.
Seus subordinados em geral o admiravam, se tornando fiéis colaboradores e defensores dos seus meios e métodos. Mas eram poucos os que por opção queriam trabalhar sob suas ordens. Por isso alguns detratores chamavam sua delegacia de museu. Só muito recentemente alguns novos policiais foram direcionados para lá. Um por falta de vaga em outro lugar, na área de informática, uma por desejo de trabalhar especificamente com Silva, o que gerou muito falatório e algum desconforto para ele, e o Elmo que não teve alternativa, já que evoluía na carreira e só havia uma vaga.
Foi justamente Elmo, a única pessoa capaz de amolecer o duro coração do Delegado. Na condição de Delegado assistente, Elmo foi adotado como um filho, coisa que nem mesmo o próprio Silva podia explicar. Foi uma empatia gratuita. Gostou do garoto logo que ele chegou, com jeitão de bom moço e pouca intimidade com o novo desafio da profissão, mas cheio de vontade de aprender. E isso era uma coisa que Silva valorizava. Não é só ter vontade, é preciso disponibilidade interna, aplicação, garra. E o garoto demonstrou isso, sem as frescuras da academia, sem os ranços da teoria, queria ser um bom policial e ia ser, custasse o que custasse. A essas pessoas Silva dedicava atenção, tempo e carinho. Não se furtava a dar conselhos e a contar algumas das inúmeras passagens de sua longa carreira. Via em Elmo todas as condições para sucedê-lo, e queria deixar como legado uma carreira de sucesso, baseada em poder e ação.
Agora, quase quarenta anos depois de ler o livro e ver Humphrey Bogart, no papel de Sam Spade, em “Relíquia Macabra,” já começava a contar o quanto faltava para a aposentadoria. O que ninguém imaginava é que a aproximação do fim da carreira, era a causa de seu comportamento, um pouco mais agressivo e mal humorado, do que o de costume. Todo o lado romântico e altruísta da profissão, já ficara para trás, há muito tempo. Mais do que se orgulhar do que fazia o sentimento agora era de medo da inutilidade. Olhava para os idosos e via olhares tristes de quem passou a ser espectador de sua própria história. Reagia sempre repetindo para si mesmo: envelhecer sim, brochar jamais!

Isso é tudo pessoal...

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