Sonhos de meninos,
e a descoberta de uma máfia cruel!

“Mataram o Lourenço!” A voz da velha fofoqueira na portaria me acordou. Eram duas e vinte e dois da tarde como mostrava o celular. “E eu com isso?” Quase gritei enquanto tentava controlar o zumbido no ouvido e os choques elétricos dentro da cabeça. Todo dia um monte de Lourenços, Joões, Manés, Maiquels, morrem e ninguém grita no meio da tarde. “Quem é o porra desse Lourenço?” Me fiz a pergunta levantando da cama sem motivo aparente, apenas puto.
A conversa tomava corpo bem na frente da minha janela. Podia ouvir a voz do seu Geraldo, o português que passava os dias sentado na portaria observando quem entra e quem sai, vestido com sua camiseta regata branca e deslocando de um lado para o outro, a dentadura solta na boca mole. Ele dizia (ler com sotaque lusitano): “Mas o que fez o rapaz? Um mulato tão fino, aparentemente um trabalhador”. Uma voz desconhecida de homem comentou: “Num sei não, toda vez que ele entregava pão lá em casa, me parecia meio doidão. Acho que era avião”. O comentário acirrou a discussão e muita gente opinava ao mesmo tempo.

Então o Lourenço era o Tuiúca, o garoto da padaria, que fica bem em frente ao bar do Xará, aqui mesmo em Brás de Pina. Garoto bom, preto que só ele, moleque brincalhão, cheio de vida e energia, descolado. Duvido que fosse aviãozinho do tráfico. De repente, por essas e por outras, o assassinato do Lourenço, se é esse realmente o nome do Tuiúca, passou a me interessar.
Liguei para a Mariluce e disse que não iria ao ensaio da escola de samba, tinha trabalho a fazer. Ela entendeu rápido demais, atenção! Esperei a turma da fofoca deixar a portaria e sai para ir ao bar do Xará. Não consegui, é claro, escapar do seu Geraldo. “Já soube que mataram o pirralho da padaria? Mandaram foi muita bala pracimadele”.
No bar o assunto era o mesmo, entrecortado por outros mais mórbidos ainda, como o dia a dia da política. O Xará me chamou no balcão e me levou até o fundo. Parecia muito impressionado com o que ia me dizer. Enquanto passava pela janelinha da cozinha, encomendou a caipirinha de lima e me disse com o canto da boca: “É por conta...”, debruçou-se no balcão e buscou a confidência: “Estão dizendo que o garoto levou uns tiros, mas não foi isso não. O Tião, aquele militar do batalhão aí, viu o corpo. Foi achado no terreno baldio ali perto do campinho. O garoto ta inteirinho, perfeito, nem parece que ta morto. Mas, oh, tem uma cicatriz desse tamanho no meio da barriga. Do peito até perto aqui do pirú. O pessoal fala em sacrifício, coisa de trabalho pesado”.
Pra mim tinha outro nome e merecia uma visita ao IML.
“O trabalho foi bem feito, a incisão é perfeita. Veja aqui, desse jeito todos os órgãos podem ser retirados sem problemas. E a costura foi de profissional, nem mamãe cerzia tão bem”. O doutor afastou-se e me chamou para ver outra gaveta. “Vê a menina? Igual, o mesmo cirurgião, eu diria. Chegou anteontem”. “O que diz a polícia?” Perguntei. “Polícia? Pra esses aí? Tão nem aí. Ninguém reclama. Mês passado foram três, três”, mostrou nos dedos. “Mesma coisa, chegam aí, ninguém reclama, depois jogam num buraco e tudo certo”.
Fui até a padaria. Ninguém sabia da família do Tuiúca ou Lourenço. Entregava as encomendas pelas gorjetas, aparecia de manhã e sumia à tarde.

“De uns dias pra cá, ele saia correndo e encontrava com um cara ali. Perguntei e ele disse que jogavam bola no campinho”. Contou Solange enquanto fazia um troco. Fui até o campinho e fiquei sabendo de um sujeito que aparece vez por outra, prometendo levar os garotos para times da Europa. “O Lourenço falava nisso?” “Quem?” “O Tuiúca?” “Tava cheio de marra, disse que o cara ia levar ele”. “Vocês viram o cara?” “Só uma vez, de longe. Ficou vendo a pelada e depois chamou o Tuiúca pra conversar e saiu com ele poraí”. “Ele foi pro estrangeiro?” Perguntou o mais velho com os olhos derramando esperança. “Foi”. Respondi e sai mais perdido do que bola em pelada. Mas o bom investigador precisa contar com a sorte. Um dos garotos veio correndo atrás de mim. “Moço, o senhor também leva a gente pra jogar no estrangeiro?” “Depende”. “O homem que levou o Tuiúca ia me levar, mas no dia o Tuiúca foi comigo e ele escolheu ele. Sem nem ver o neguinho jogar. Sou muito melhor do que ele”. “E por que não levou você?” “Sei não. Ele começou a perguntar um monte de coisa e quando eu falei que morava com meus pais, ele escolheu o Tuiúca, que falou que já tava um tempão na rua”. “Então deve ser isso. Ele só leva menino de rua. Deve ser um cara muito caridoso”. O garoto concordou e acho até que compreendeu. Pedi a ele que ficasse de olho no meu rival e qualquer coisa me avisasse no bar.
Dias mais tarde, um calor filho da mãe, ninguém se lembrava mais da morte do Lourenço. Cheguei no bar e o Xará gritou lá de dentro: “Silva, teve um garoto te procurando aí”. Quase corri até o campinho. “O senhor pediu pra avisar, o cara combinou com o Careca, aquele ali, oh! Esse joga muita bola”. Passei a tarde toda de tocaia num canto de rua vendo a pelada. O garoto tinha razão, o Careca é um craque. Já de tardinha o sujeito apareceu lá do outro lado. De longe fez sinal e o Careca, depois de bater na mão de cada um dos companheiros, correu para encontrar um futuro melhor. Eu ia precisar de muito sangue frio, não podia me precipitar, tinha que ir ao limite.

Segui os dois mantendo distância, mas logo entraram num carro, que aguardava no beco. Segui num táxi. Depois de muito dobra pra cá, vira pra lá, o carro entrou em uma clínica, pelo menos era o que dizia a placa na casa, no bairro da Penha. Pulei do carro e toquei a campainha. Uma moça me atendeu. “Meu médico recomendou que eu viesse aqui fazer um exame”. “Estamos em obras, senhor”. “Brincadeira gata, sou da empreiteira e vim acompanhar as obras”. Forcei a entrada. Lívida a moça pediu que eu aguardasse. Sumiu por uma porta e eu por outra. Ouvi vozes atrás de uma das paredes. Coloquei a arma por baixo da camisa na frente e entrei. Eram dois homens rodeando uma cama de exames e o Careca deitado nela. “Sou empresário do garoto e vim acertar o contrato”. Apresentei-me enquanto mostrava com o que assinaria, caso algum deles se mexesse. A surpresa jogava a meu favor. Forçaram a porta e eu mesmo disse, entra. Não dava pra controlar três, por isso atirei primeiro pra perguntar depois. O brucutu tinha um 38 enorme, mas nunca mais ia usá-lo. Ouvi quando a moça saiu correndo, sem se despedir. Os outros dois estavam em pânico. Parabenizei aquele que parecia ser o cirurgião: “Você será uma costureira muito querida na prisão”.
Assim que a polícia chegou, levei o Careca até o bar do Xará. Enquanto ela traçava um mocotó, expliquei tudo: “Os caras iam mandar você para um time da Turquia, come tudo aí e treina direito que a gente arranja um teste no Real Madrid."
Ilustrações: Murilo Martins
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