Naquela noite Mariluce me colocou pra fora da casa dela. Estávamos na cama há quase dezoito horas, e ela alegou que precisava dormir pelo menos um pouco, por conta de um compromisso logo cedo. Andei em direção a minha casa. Tarde da noite as ruas de Brás de Pina são ainda mais tranqüilas e silenciosas. Fui levado por uma necessidade degustativa até ao bar do Xará.
Fino acenou lá de dentro e antes que me ajeitasse na mesa, apareceu trazendo a sua incomparável caipirinha de lima.
- Grande Silva. – saudou ele – ta sumido.
- É mesmo, desde ontem... – respondi enquanto saboreava a caipirinha e resolvia minha carência.
- Acabei de falar com o Xará pra colocar aí uma porta com vidro e escrever Zé Silva, Detetive.
- O que foi desta vez, Fino? – Perguntei esperando a bomba.
Fino colocou sua mão em meu ombro, sinal que o assunto era sério e confidencial, jogou o inseparável pano de prato no próprio ombro e aproximou-se pra falar quase colado na minha orelha, apesar de estarmos apenas os dois no bar àquela hora.
- O sujeito disse que conhece o pai daquele menino que você impediu que levassem, o tal Careca. Pois ele quer falar com você. É urgente. – Afastou-se e puxou do bolso um papel. – Deixou um telefone pra você ligar a qualquer hora, qualquer hora, - reforçou.
Liguei, eu sempre ligo. O Walter, como disse que chamava, contou rapidamente sua estória e mencionou a possibilidade de pagar pelo trabalho. As coisas estavam melhorando.
Nos encontramos no apartamento dele, no bairro de Botafogo. Há duas semanas o irmão fora encontrado morto em casa, pela esposa que voltava de uma viagem ao interior do Estado. O irmão, trinta e cinco anos, saudável, sem vícios, caseiro, estava trancado, por dentro, no quarto, o rosto, o pescoço, os braços, muito arranhados, e uma expressão terrível de desespero. A causa mortis: parada respiratória. Os legistas falaram em surto psicótico, mas Walter não se conformava. Conhecia muito bem o irmão e nunca o vira com qualquer sinal de descontrole emocional, ou mesmo com alguma doença respiratória grave, ao contrário, era um atleta amador.
Apesar das dúvidas do irmão, não me pareceu um caso suspeito. Fui falar com a legista que assinava o óbito. Para minha surpresa, a doutora Marisa era jovem e linda. Usava um jaleco de mangas curtas e o desenho dos braços prenunciava belas axilas, criminosamente vestidas.
- Não há dúvida, o Waldir sofreu um ataque de ansiedade muito forte, um surto, que provocou a parada cardíaca fulminante. – Disse a doutora consultando uma ficha.
- E os arranhões no rosto, pescoço...?
- Ele mesmo se arranhou. As unhas estavam cheias de pele e sangue.
- Alguma coisa chamou sua atenção doutora? O fato dele se trancar no quarto? Um rapaz tão saudável, não acha estranho? - Perguntei
- Como é mesmo o seu nome?
- Silva, Zé Silva.
- Seu Silva, ele entrou em pânico por algum motivo. Segundo a polícia não foi encontrado nenhum vestígio de arrombamento ou de luta pela casa. Então a conclusão é de surto psicótico. – Balançou a cabeça, como querendo afastar alguma idéia. – É só isso.
- Se lembrar de alguma coisa me liga, por favor. – Disse escrevendo o número do meu celular na ficha do morto.
Saí do IML com gosto de éter na boca e com sede. Parecia um caso banal, sem qualquer vestígio de crime. A esposa viajava sempre em finais de semana para visitar os pais no interior, e o Waldir estava habituado a passar os dias a sós em casa. Segundo o irmão, adorava ficar vendo futebol e séries na televisão.
Fui direto para o bar do Xará. A idéia era beber uma caipirinha de lima, ligar para o Walter e dizer que não tinha nada de errado com a morte do irmão e correr para encontrar a Mariluce, que não via há muitas horas.
Enquanto bebia e conversava com o Fino o celular tremeu no bolso.
- É o Silva?
- Sou eu. Quem é?
- Doutora Marisa, a legista. – Fez silêncio esperando que eu a reconhecesse. – Lembrei de um detalhe. A perícia encontrou por toda a casa, vestígios muito evidentes de inseticida, essas de matar insetos. A casa foi limpa, mas a quantidade era enorme.
- Pode ser a causa? – Perguntei.
- Não sabemos todos os efeitos do veneno, em grande quantidade, no organismo humano. Mas ele não morreu envenenado. Resta saber por que o inseticida foi usado?
Estranho. Liguei para o Walter, o irmão. Não me deixou falar, quase gritou: “A vagabunda da minha cunhada já ta colada com outro. Um babaca dono de uma dedetizadora. Não tem nem um mês, cara”. Só não ri em respeito ao sofrimento dele. Mas veja que coisa.
Chamei o Walter para mais uma conversa. Contei sobre o inseticida e tive que segura-lo pra não ir atrás do novo casal.
- Seu irmão tinha medo de alguma coisa, ou algum trauma de infância?
Ele pensou por alguns instantes:
- Não ele era um cara corajoso. – Riu, com amargura e completou. – A única coisa que fazia ele sair do sério era barata.
Ao levantar os olhos e ver minha expressão de é isso aí, sua cabeça funcionou rápido.
- Meu Deus! – Disse levando a mão à boca.
Com o depoimento da doutora Marisa confirmando que o surto pode ter sido causado por um trauma, ou um stress irracional, e por não ter sido encontrado nenhum frasco de inseticida no apartamento da vítima, a polícia conseguiu a confissão do namorado da viúva.
- Ela sabia que o marido morria de medo de barata. Pedi meu pessoal para capturar o maior número possível e na noite em que a Neide viajou, soltei todas no apartamento. No dia seguinte bem cedo eu mesmo apliquei o inseticida e depois fiz a limpeza.
Walter disse que sabia que algo estava mal explicado. Agradeceu várias vezes e pagou em espécie.
Pedi ao Fino que fizesse alguns litros da caipirinha de lima e corri para a casa da Mariluce. Antes de leva-la pra cama vasculhei cuidadosamente a casa. Fiquei tranqüilo, não vi nenhuma barata.
(Sem ilustração, por favor!!!)
...isso é tudo pessoal.
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