o rosto quase infantil sustentava uma expressão cansada da luta pela sobrevivência...

Estava sentado na minha mesa cativa, no bar do Xará. O movimento naquela noite chuvosa de segunda-feira era pequeno, o que permitia uma conversa mais esclarecedora com o Fino, garçom mor e filósofo.
Depois do inevitável futebol, Fino discorria sobre o trabalho e a necessidade que o ser humano tem de cumprir com suas obrigações: “Um negócio morbígeno que só essa raça tem”, dizia ele com toda a autoridade de quem conhece abissalmente o semelhante e “estuda” o dicionário, para melhor comentar suas vicissitudes intrínsecas. Assim é o Fino se lhe permitimos, em troca de uma caipirinha de lima perfeita, opinar sobre qualquer coisa. Mas ele na verdade estava curioso sobre um aspecto: “Me diga uma coisa Silva, você saiu da polícia e agora se especializou, qual um detetive de cinema, a desvendar casos peculiares. Estas vivendo de que, meu camarada?” “O negócio do dinheiro, entra como?” Emendou revelando uma preocupação verdadeira. Ajeitei-me na cadeira pronto para explicar, quando um casal entrou. Estavam molhados e careciam de atenção e álcool, duas coisas que faziam do Fino o melhor garçom de Brás de Pina.
Diria ao Fino que o caso da dona Letícia, que chamei de Conexão espanhola, uma estória um pouco mais complexa, me rendeu o suficiente para uns meses.
Passei a dar atenção a caipirinha, mas ouvi às minhas costas: “O senhor é o detetive Silva? Posso falar com o senhor?” Me virei intrigado. “Qual o seu nome?” Perguntei mais para identificar o sexo de quem perguntava. Os cabelos oxigenados molhados pela chuva, escorriam e grudavam na cabeça. Os olhos tristes tinham uma cor indefinida entre o marrom e o caramelo. O rosto quase infantil sustentava uma expressão cansada, mas ansiosa. Era de estatura mediana e se vestia com simplicidade, calça jeans e camiseta escura. A roupa molhada revelava um corpo em formação. “Francis”. Respondeu a figura, dificultando mais ainda a definição do sexo. “Sente-se aí”. Indiquei a cadeira em frente. “Quer beber alguma coisa?” “Não, agora não”. Pareceu decidida. Fino se aproximou, mas a um leve gesto meu, afastou-se. “Então, quer falar comigo...” “Estou com um problema e me indicaram o senhor. Falou que eu podia confiar”. “Quem indicou?” Estava louco para ouvir um nome. Era a segunda vez que me indicavam, assim, misteriosamente. “A pessoa pediu pra não dizer, não sei porque, mas recomendou muito. E eu não vou dizer”. “Muito bem Francis, depois a gente resolve isso. Qual o seu problema?” “O senhor pode me dar um cigarro?” “Parei”. “Bom, eu vi uma coisa, e por causa disso querem me matar”. Disse com voz trêmula e emocionada. Fiz um sinal para o Fino trazer um cigarro no varejo. “Conta a estória direito, do início”. “Eu moro e trabalho em Copacabana”, disse enquanto o Fino entregava o cigarro e uma caixa de fósforos, “faço ponto na Avenida Atlântica. Agora no verão tem muito turista, aumenta o perigo, por isso trabalhamos em grupo”. Acendeu o cigarro, tossiu, e a voz saiu mais forte, masculina. “A gente também paga segurança, diariamente. Semana passada a Michely, que é quem faz o contato mais direto com os seguranças, foi levada e voltou com o rosto inchado e a notícia de que queriam aumento por causa do verão. Passou de dez reais para vinte, de cada uma de nós. Resolvemos resistir e lutar. Michely levou nossa reivindicação: passar para doze reais. Isso já faz três dias e ela não apareceu mais. Ontem à noite, já na madrugada eu vi um carro levando uma colega. Eram dois que conheço e eles viram que eu vi. Me perseguiram e um deles me disse que eu seria a próxima se a gente não pagasse o que eles queriam”. “Já foi à polícia?” Perguntei. “Eles são a polícia”. Nos olhamos por um tempo e os pensamentos coincidiam: “Fodeu!” “Tentei falar com um delegado da área que disseram que é legal, um tal de Espinosa, mas não consegui e meu tempo é curto. O senhor pode nos ajudar?” Esvaziei o copo e mostrei para o Fino. “Esse negócio é complicado, envolve a corporação, política, poder...” Balancei a cabeça e minha vontade era não me envolver no assunto. “Falei com umas amigas que vinha procura-lo e estamos dispostas a pagar. Cada uma vai dar quinze reais”. Fiz uma conta rápida de cabeça, dava pra mais de mil reais. “Grana não é o problema...” “Então o senhor vai nos ajudar?” A frase era mais afirmativa do que interrogativa e carregada de esperança. O Fino deixou o copo cheio na mesa e me olhou com sua cara típica de “é roubada”.

Na noite seguinte eu estava em Copacabana, sem a menor idéia do que fazer, mas convicto de que entrara num terreno minado, onde o ser humano se igualava aos irracionais, agindo por instinto, seguindo a lei da selva. O predador e a presa, cumprindo seus papéis na cadeia alimentar. Um mundo de exploração, na sua forma mais baixa, cruel e muito perigoso. A primeira coisa a fazer era ficar de olho e seguir à risca a combinação com Francis.
Não demorou muito e Francis apareceu. Só reconheci porque me fez o sinal. Estava loiríssima, os cabelos esteticamente arrepiados, alta sobre a plataforma que arrastava com os pés, usava um micro vestido lilás cintilante. Reuniu-se ao grupo por um tempo, falou com todas e se separaram, sem se distanciar muito.
Logo passou um carro da polícia, bem devagar. O policial da direita olhava “as moças” e dizia alguma coisa, depois soube que falava o nome de cada uma. Ao passarem pela Francis deram uma parada. O policial disse alguma coisa. Ela recuou instintivamente e fez menção de correr. O carro avançou e dobrou na esquina. Francis andou rápido até meu posto de observação. “Ele me perguntou se dei o recado para as outras e quis saber do dinheiro”. Ela disse quase chorando. “Você perguntou da Michely?” “Não tive coragem”. “O que vai acontecer?” Perguntei. “Mais tarde algum deles passa, à paisana, e pega uma de nós, era sempre a Michely, agora não sei”. “Acho que será você”. Ao ouvir isso Francis entrou em pânico, tive que acalmá-la. “Como você vai saber que é o cara?” Perguntei prevendo a dificuldade. “Só depois que estiver dentro do carro. A Michely nunca sabia quem vinha pegar o dinheiro”. Estávamos diante de um grande impasse, se já era um terreno minado, agora era um terreno minado no escuro.
O gol da polícia voltou. Num impulso e sem nada programado, corri até o carro fazendo sinais. O policial me examinou com seu raio-x e esperou. “Seu guarda fui roubado por uma dessas aí”. Ele me olhou com jeito debochado. “Roubado como? Aqui na rua?” Falou ele debruçado na janela do carro. A idéia me surgiu de repente. “Foi uns dias atrás, saí com uma tal de Michely e ela me roubou. Tenho vindo procurar por ela e as outras dizem que ela sumiu”. “Meu amigo, ta na chuva é pra se molhar”. Aconselhou. “É, mas eu quero dar queixa”. Ficou impaciente. “Cara ce vai pagar esse mico, vai na delegacia dizer que foi roubado por um travesti? Deixa disso, irmão”. “Num dá seu guarda, ela levou mais do que dinheiro. Preciso achar essa filha da puta. Por um acaso tenho uma foto dela”. Chutei pra gol sem saber a direção e bateu na trave. “Como você tem uma foto?” “Ué, tenho, tirei no celular”. “Quedê a foto?” “Ta ali com uma outra, eu estava mostrando quando vi vocês. Vou pegar”. Voltei correndo pra onde estava a Francis, que parecia um fantasma de tão branca. Ela, claro, não tinha foto nenhuma. Disse pra ela ir andando e voltei até a polícia. “A puta rasgou a foto e eu não trouxe o celular”. O policial trocou um olhar com o outro e disse com ironia: “Cara, vai na delegacia e conta sua estória, quem sabe”. Saíram com o carro e vi quando fez um sinal de positivo e depois esticou o indicador, simulando um revólver, para a Francis, que não entendia nada. Mas naquela noite ninguém apareceu pra buscar o dinheiro.
Na noite seguinte, já com a foto da Michely, circulei pelo calçadão. Falei com umas pessoas, vendedores ambulantes, flanelinhas, e fiz circular a notícia de que a “moça” estava sendo procurada. Já no fim da noite um garoto com uma caixa de engraxate se aproximou. Veio com o papo de engraxar e respondi com um sonoro “drogas to fora”. Então ele abriu o bico: “O senhor ta procurando a Michely?” “Por que você quer saber?” “Porque eu sei qual é. To ligado”. “Qual é rapá, sabe o que?” “Pô, me dá cem conto aí, tenho que pagar uma parada sinistra. Eu sei das coisa, cara”.“Ih, qualé malandro, que cem conto? Deu banho agora paga”. Falei enquanto me afastava. Ele foi atrás. “Cara eu sei o que ta rolando. Sou amigo das meninas. Me da uma força aí”. Diz logo então e aí vou ver se vale cem”. “A Michely ta de armação com os caras. Sei onde ela ta”. “Onde?” Perguntei enfiando a mão no bolso. Ele deu o serviço. Tirei duas notas e dei a ele, que saiu correndo. Era hora de fazer uma visita.
Eram três e meia da madrugada. O apartamento na rua Prado Júnior ficava no sétimo andar. Convenci o porteiro a me deixar entrar sem avisar e a me dizer quem estava no local. Bati de leve na porta e fui prontamente atendido. Apesar do susto, Michely não teve como fechar a porta. Correu para a janela, acho que pensou em gritar, mas teve bom senso. Conversamos por um bom tempo e ela tentou até me seduzir, mas eu pensava na Mariluce. Pelas contas pagas do condomínio, o ap estava em nome do policial. Numa rápida vistoria, encontrei alguns quilos da boa e do preto. Algumas armas e uma agenda muito interessante. Michely quis saber quem a entregou. “Alguém mais ferrado do que você”.
Liguei dali mesmo para a polícia, um delegado conhecido. Aguardei até a chegada deles ao prédio, numa conversa muito proveitosa com Michely.
Francis me procurou de novo no bar do Xará. Não aceitei o dinheiro, apenas os cem do engraxate. Antes que ela saísse falei: “Não se iluda, isso nunca vai ter fim”. Ela balançou a cabeça e sorriu conformada.
Ilustração – Murilo Martins
Um comentário:
Olá Mas,
Que bom!
Pelo visto você voltou com força com as histórias do Silva. Bacana mesmo,
Gostei muito desse conto. Você está cada vez mais dominando as nuances do policial. Parabéns hein!
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