quinta-feira, 3 de novembro de 2011

A história de Ane 4. Aqui estamos nós...

                                                       foto da internet - sem crédito

     Vamos voltar à história de Aniella. Para recapitular: a moça conta a aventura em que se transformou sua vida, simplesmente por ser mulher.
     No último episódio, podemos chamar assim, Ane conseguira fugir dos horrores da fazenda, onde vivia subjugada e violentada pelo patrão, um homem a caminho do poder municipal. Com uma estratégia ousada e corajosa, pegou uma carona e chegou, depois de alguns dias de viagem, ao Rio de Janeiro.
     Pedi a ela que continuasse a história. A simples lembrança devolvia à tona o circo de horrores ainda tão latente em sua alma. Mas tomada pela força que a fez sobreviver contou e repasso da melhor maneira possível:


Há pouco mais de um ano, sem saber aonde ir, andando sem rumo pelo bairro da Lapa sentou-se à mesa de um pequeno restaurante no final da mesma tarde em que chegara à cidade do Rio de Janeiro, morta de fome. O dinheiro que trazia na calcinha queimava como uma brasa atirada ali à sua revelia. Apesar de tudo pelo que passara não se sentia completamente à vontade em ter apanhado um dinheiro que não era seu. Cometera roubo, um crime, sabia muito bem ser passível de punição. Nascera e fora criada na roça, mas recebera educação, tanto da mãe, como no pouco que frequentara da escola. Adquirira o discernimento sobre o certo e o errado e, não seriam os maus tratos que a transformariam em uma pessoa ruim. Fugira por pura preservação. Assistira desde cedo o sofrimento de sua mãe, e como tudo aquilo arruinara a vida do pai. De alguma maneira desejava viver uma história melhor, extrair da vida a chance de ser respeitada, como mulher, como gente. Na véspera de fugir dissera à mãe o que pretendia fazer. Ela não disse nada, sequer derramou uma lágrima, abaixou o rosto virou de costas entrou no quarto e fechou a porta. Até hoje ouvia o soluço que escapou do peito de sua mãe, um som grave abafado pelas paredes onde, devia estar ainda hoje, enterrada viva.

     Uma loura grande, opulenta, apresentou-se a ela como a proprietária do restaurante. A hora era inconveniente para uma refeição, há pouco acabara de servir o almoço e nem começara a pensar no que servir para o jantar. Mas, poderia preparar algo especial para ela, que parecia faminta e desamparada. Ane ficou comovida com a boa vontade da senhora, por instantes desejou que fosse uma tia, ou até mesmo a amiga que nunca tivera. Aceitou de bom grado a oferta e pouco depois tinha diante de si uma refeição farta e saborosa. Enquanto comia Rosângela lhe fez companhia. Contou uma história muito parecida com a sua, de como veio do interior para tentar a sorte na cidade grande, falou das dificuldades pelas quais passara por um longo tempo, sem ao menos um lugar onde dormir. Dramatizou sobre as investidas de malandros que a viam como uma presa fácil. Como sonhara que aparecesse alguém que lhe estendesse a mão, a aconselhasse, oferecesse oportunidades. Por tudo isso sempre que conhecia alguém na mesma situação, que quisesse ser ajudada, fazia por ela, porque muitas acreditavam na sorte e desdenhavam a mão estendida. Depois voltavam arrependidas. Algumas nunca mais. Porém, para as que aceitavam o amparo, não media esforços para que a pessoa nunca passasse pelo o que ela tivera que passar.


     Ao final da fala da senhora, Ane já não conseguia engolir a comida, a emoção formava um bolo em sua garganta. Que vontade de abraçá-la, agradecer por falar com ela, por mostrar que nesse mundo tinha sim, gente boa de bom coração. Tímida, envergonhada pelos olhos marejados, disse qual uma criança querendo se mostrar capaz, que poderia pagar pela refeição. Olhou a sua volta, e como não havia mais ninguém, tirou o maço de dinheiro embrulhado em papel ordinário. Lembrava-se até hoje da expressão de espanto da senhora, da frase dita com a mão cobrindo a boca: “minha filha do céu, de onde veio isso?” Imediatamente recusou o pagamento, disse que fazia de bom grado, que gostara dela. E completou: “Agora que já comeu conta sua história, como uma mocinha tão graciosa veio parar aqui?” Ane ainda não atinara o quanto precisava desabafar, confiar a alguém a triste história de sua vida curta e sofrida. Ao terminar o relato sentia-se leve, chegara a rir para finalizar dizendo: “e aqui estou pronta para uma vida nova”.

     Rosângela com brilho nos olhos mostrou-se emocionada por poder ajudar, levantou-se, estendeu a mão a Ane e disse: “Jesus filho de Maria, venha comigo minha filha.” Ane foi levada para os fundos do restaurante, onde a loura grassa morava e recebia seu companheiro. O homem dormia apenas de cuecas sobre uma cama pequena com lençóis encardidos. A mulher o acordou sem qualquer cerimônia, a princípio ficou furioso, mas ao ver a menina não escondeu seu prazer. A apresentação foi feita e, ainda agora, as palavras ditas por Rosângela ecoavam, como presságio nos ouvidos de Ane: “este é o Washington, é com ele que você vai mudar sua vida”.

     Começava aí o que Aniella chama de segunda fase, tão sofrida quanto a primeira, mas com um detalhe, já não era mais uma menina inocente. 


     Continua...

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