quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Tudo por um reino

A luta pelo trono e
a esperteza do súdito.


Naquele dia a Mariluce estava indócil. Nem bem acabamos de transar, ela se levantou apontando o relógio, nervosa, agitada, falando pelos cotovelos: “Já são três e meia da tarde, preciso me arrumar. Hoje não posso chegar atrasada no ensaio. Se você vai comigo, vai tomar banho e se vestir...” “Ou,ou,ou,ou. Mari, o ensaio é as onze da noite. Se ainda sei contar faltam mais de seis horas. Ta maluca? Volta pra cama, olha como eu fiquei. Vamos fazer de novo...”
Ela parou de se vestir, ficou com a calcinha pelo meio das coxas. Olhou pra mim de um jeito desconhecido. Parecia transtornada. Cheguei a sentar na cama pra ver melhor o rostinho lindo e sensual, transformado em um rostinho belicoso, lindo e sensual. “O que foi? Que cara é essa?” Perguntei cheio de inocência. “Às vezes você não me ouve”. Falou apontando o dedo. Estava sinceramente magoada. “Falei pra você que o diretor da escola arranjou uma bandida, dizem que tá de caso, e a mulherzinha ficou me ameaçando e dizendo que a bateria é dela. Onde é que está sua cabeça, Silva?” Voltou a se vestir. “Você sabe, gretinha”, de vez em quando eu a chamo assim, e ela gosta, naquele momento não, nem me olhou, “minha cabeça só fica em você. Dentro ou fora, não tem pra ninguém”.
Mas ela não estava para brincadeiras. Continuou se arrumando, como se estivesse muito atrasada. Resmungava sem parar, coisas que eu não entendia. Não dava pra arriscar precisava falar sério. “Tudo bem, você pode repetir o que você disse. A gente tava transando, Mari. Pôxa”. “Não, a gente ainda não estava transando. Mas vou repetir”. Parou no pé da cama, cruzou os braços sob os seios mais perfeitos do mundo e falou: “Até domingo estava tudo certo, eu era a rainha da bateria. Mas aí o diretor apareceu com uma baranga, toda, toda, e ela passou o ensaio inteiro disputando o espaço comigo, assim como quem não quer nada, se engraçando pro mestre da bateria. E o pior foi depois, se agarrou com o diretor na minha frente e assim que deu falou rindo no meu ouvido: “se manda perua seu show acabou”. “Acabou uma pinóia, agora é que vai começar”.
Ficou claro que a guerra estava declarada, e eu sabia exatamente até onde aquilo podia chegar. O melhor a fazer era não contrariar a moça. Fiquei ali fingindo que me arrumava e assistindo ao espetáculo da tarde: Mariluce, num veste desveste, para ir a luta.
Seis e meia da tarde saímos da casa dela. Insisti em passar no bar do Xará e tomar uma pelo menos, já que a noite tinha indicação bélica. Fino preparou uma especial de lima pra mim e uma de maracujá pra Mariluce, a meu pedido.
Ela mantinha-se quieta, ensimesmada, vez por outra apertava os olhos e respirava pesado, com o ódio faiscando pra todos os lados. Eu entendia a gravidade da situação e a importância que o reinado à frente da bateria tinha pra ela. Estava preocupado com o que podia acontecer no ensaio. Por outro lado não tinha a menor idéia de como a Mari reagiria naquela circunstância. Era melhor me preparar para o pior.
Consegui segura-la até as dez horas no bar, mas minha integridade física estava ficando ameaçada. Caminhamos um pouco pelas ruas desertas de Brás de Pina e partimos para a quadra.
A quadra já estava cheia e animada com o típico espírito carnavalesco, um som tocando os sambas dos anos anteriores, a bateria já esquentando os coros, as mulheres em plena exibição e azaração, os homens pavoneando pra lá e pra cá, com os copos na mão.
Mariluce não perdeu tempo e foi falar com o Mestre de bateria e com a rapaziada. A todo tempo olhava para o camarote e fazia um sinal de não com a cabeça pra mim.
Aproveitei que ela foi ao banheiro e me aproximei do Mestre. “E aí? Belo samba”. Falei amistoso. “É esse ano a gente leva, ta tudo em cima”. Fiquei ali sem saber se abordava o assunto ou não, afinal nunca havia me metido nas coisas da Mari. Mas precisava pelo menos saber as chances da menina. “Escuta, a nossa rainha tá bem?” “Quem?” Ele perguntou demonstrando surpresa. “Cara”, me olhou sondando cumplicidade, “a gente quer a Mari, você sabe, mas o homi apareceu aí com uma amiguinha e ta forçando uma barra. Diz que hoje fica decidido”. Aproveitei que tinha umas cento e oitenta pessoas querendo falar com ele e me afastei. O caso era sério.
Dali vi Mariluce andando de um lado para o outro, procurando alguém. Atravessei o salão e me aproximei. Ela passou a mão no meu peito, assim como se afaga um cachorrinho e continuou sua busca. De repente ficou imobilizada. Dei a volta e olhei-a de frente. O olhar felino e os dentes à mostra prenunciavam o ataque. Tentei desvia-la, mas estava determinada. Olhei na direção do seu olhar e vi a rival. Uma loura grande, oxigenada, exagerada e a coisa mais simpática que se via por ali. Conhecia muito bem o tipo. As delegacias eram as salas de estar delas. Falava com todos, distribuía beijos, acenava, ou seja, estava em campanha. O tal diretor da escola que a levava como um súdito, era mais baixo do que ela, barrigudinho e endinheirado. Os trejeitos mostravam.
“Mari, se você atacar a moça vai perder a razão”. Disse decidido, tentando me interpor em seu caminho. “Eu não estou nem aí pra razão, essa bandida vai ficar sem os dentes”.
Ao mesmo tempo em que a atitude da Mari me assustava, eu via que ela estava com a tal da razão, pelo menos até ali. Segurei-a pelos ombros e fiz cara de bravo. Por um instante ela acusou o golpe. “Se você fizer o que pretende, vai dançar. Deixa comigo”. Falei firme e fui resolver.
Não tinha a menor idéia do que fazer, mas era bom arranjar uma boa e rápida. Caminhei decidido afastando as pessoas e me aproximei do casal que se dirigia à bateria. A loura e o baixinho falavam com todos e entrei numa espécie de fila desorganizada. Olhei para trás e vi Mari parada no mesmo lugar, em expectativa. Chegou minha vez na fila. Cumprimentei o baixinho com um sorriso e um tapinha no ombro e abracei a loura. “Como é que cê veio parar aqui, mulher?” Falei no ouvido dela. Tentou se afastar para me olhar, ficou confusa. “Você é muito esperta. O cara aí sabe quem é você? Aliás, quem é você mesmo?” Aí me afastei rindo. A loura murchou, azedou. Olhava com insistência pra mim, louca pra lembrar quem era. Eu piscava pra ela fazendo questão que o baixinho visse. A coisa desandou rápido. O Baixinho pegou a loura pela mão e a arrastou dali, em direção a uma espécie de salinha vip, muito bem guardada.
Tempos depois o baixinho reapareceu com amigos e seguranças, mas sem a loura, que não foi mais vista. Me olhava com insistência, mas sem nenhuma acusação formal.
Por enquanto a Mari é a Rainha. Não se sabe até quando, ou até “que loura”.
Mariluce quis saber tudo. “Disse pra loura que a bateria já tinha rainha, que ela podia ir reinar em outro lugar”. Mari riu e aquela foi a noite mais cansativa da minha vida. E uma das melhores.

Um comentário:

Anônimo disse...

Bela saída a do Silva. Nesse meio todo mundo tem o meio muito apertado (pelo menos nessas horas).
Belo conto, envolvente.
abraço