
Não sei a quantas noites não durmo um sono justo. Minha grande preocupação é com a Mariluce. Antes só me dava aborrecimento próximo ao carnaval, com sua mania de ser rainha de bateria. Mas agora, depois que foi convidada a fazer parte do corpo de dançarinas em um programa de televisão, acabou meu sossego de vez. Não que desconfie dela, de jeito nenhum, é que em todos os lugares aonde vou aqui em Brás de Pina, seja no bar do Xará, ou na barbearia do Vicente, tem sempre um engraçadinho para dizer: “gostosa aquela Mariluce, hein?”. É um desassossego.
Sempre a acompanho até o estúdio e fico do lado de fora esperando acabar o programa. Nunca estou só, pelo menos outros vinte caras como eu, disfarçam por lá.
Um dia desses um dos caras aproximou e puxou assunto:
“Você já foi da polícia, né?”. Falou sem me olhar nos olhos, um mau começo. Como não falei nada, ele emendou, “minha namorada é colega da sua aí no programa, ela me disse que a sua namorada, a Mariluce, é esse o nome, né? Falou pra ela que agora você é detetive particular”. Carregou nas duas últimas palavras.
Não tem nem um mês que a Mari está no programa e todo mundo já sabe da nossa vida.
“E por que você quer saber?”. Perguntei procurando intimidá-lo.
Um tanto sem jeito e protegendo a informação, ficou na ponta dos pés para falar bem perto da minha orelha esquerda:
“Você investiga mulher, quero dizer, descobre se ela está, assim, como dizer...”
“Traindo, corneando, sendo infiel?” Tentei ajudá-lo.
“É. É isso”. Ele disse aliviado, como uma virgem no confessionário, e emendou, “é caro?”
Se tem uma coisa que nunca vou fazer na vida é seguir mulher insatisfeita. Pra mim mulher só trai quando o cara desconsidera, ou então é do ramo.
Uma semana depois não vi o sujeito ali na turma do relento. Mais tarde a Mariluce, a caminho de casa, me segredou:
“Hoje uma colega não apareceu, a Jurema. Uma outra disse que pode ter acontecido alguma coisa com ela. O namorado não queria que ela trabalhasse fora”.
Ela me olhou com aquela ruga de preocupação entre as sobrancelhas, e eu já sabia o que ia acontecer.
Com o endereço da Jurema na mão fui até Jacarepaguá. Ninguém em casa. Na padaria, onde disseram que o namorado trabalhava, fiquei sabendo que o cara não aparecia há uma semana, sem nem avisar.
Fui até a casa dele, no lugar conhecido como Rio das Pedras. A mãe, dona Josefa, uma pernambucana de noventa anos, que carrega o mundo nas costas, me disse que o Dinaldo não é muito de dormir em casa, e falou com o megafone que levava na garganta: “Desde que se enrabichou por uma rapariga aí que ele quase não vem aqui. E o senhor quer o que com ele?”.
Era hora do boteco. Achei um próximo à casa da Jurema. A caipirinha era boa e quem fazia tudo era a Terezinha.

“De onde você conhece a Jurema?”. A pergunta dela fazia sentido.
Tomei um bom gole da caipirinha e fui sincero: “Ela trabalha com a minha namorada”.
Terezinha ficou me olhando com uma expressão inquiridora, mas alguma coisa por trás dos olhos semicerrados me arrepiou.
“Ela também viajou, ou tá querendo ir?” A voz saiu mais baixa, confidencial.
“Pra onde?” Ela recuou diante da pergunta. Olhou discretamente para um sujeito sentado no fundo do bar. Imediatamente ele fez um sinal pedindo mais uma cerveja. Ela afastou-se com um sorriso.
Voltei no dia seguinte. A configuração no bar era a mesma. Notei que o sujeito no fundo do bar, continuava lá. Ficou em alerta com a minha entrada.
“Qual o seu nome?”. Terezinha perguntou ao servir a caipirinha.
“Silva, José Silva”. Deixei passar um tempo e a chamei de volta. “Sabe o que é? Minha namorada tem interesse na viagem, ela queria saber se a Jurema foi mesmo”. Terezinha largou outro rápido olhar para o sujeito, no fundo. Aproximou-se e disse com um sorriso de dentes amarelos: “Eu não sei de nada, conversa ali com o Aderbal. É o cara”.
Aderbal parecia fazer parte da mesa, uma estátua erigida ao bebedor contumaz. Mexia o corpanzil o mínimo possível, economizando energia para o copo.
“A gente oferece um futuro pra essas meninas. Primeiro mundo, salário em euro, vida boa, realização dos sonhos. É uma oportunidade”. Finalizou fechando o olho direito.
“O que ela tem que fazer pra realizar esse sonho?”. Procurei um sorriso pra ganhar a confiança dele.
“Manda ela me procurar. É só ligar pra esse celular e a gente marca um encontro. Vamos fazer umas fotos, os caras lá são exigentes, e se ela for aprovada, tudo certo. A viagem é por nossa conta”.
Três dias depois, foi o tempo que levei pra convencê-la, Mariluce marcou o encontro num apartamento em Copacabana. A recomendação era que fosse sozinha e levasse os documentos. Fizemos uma combinação e fiquei aguardando em um boteco nas proximidades. O celular dela, o tempo todo ligado, transmitia para o meu, os acontecimentos. Durante uma hora ouvi as baboseiras, as propostas, as promessas, até que uma terceira voz apareceu e chamou para as fotos. Mariluce perguntou se podia chamar o namorado, que era muito ciumento. A reação foi dura: “se você quer fazer sucesso e ganhar dinheiro, esqueça esse Zé Mané, que só vai te atrasar”. Ela seguiu o roteiro. “Mas a Jurema me disse que o Dinaldo acompanhou tudo”. “Olha aqui garota, o tal do Dinaldo se meteu e já era. Foi! O negócio aqui é pegar ou largar. Se quiser faz as fotos pega os mil reais de adiantamento e em uma semana se manda pra Europa. Se não...”.
Além de tudo o “se não” era uma ameaça explícita. Chegara a hora de agir. Em três minutos toquei a campainha. Ouvi no celular ainda ligado: “Despacha logo, se for problema põe pra dentro e resolve”.
Antes que a porta fosse aberta totalmente, enfiei o pé e chutei o saco do grandão já atordoado com o nariz quebrado. Tirei a arma dele. O que dava as ordens apareceu na porta e tentou correr, mas acertei a bala atrás do joelho direito. O fotógrafo era um ser frágil e não resistiu.
Depois de acalmar a Mariluce, chamei a polícia e recomendei o bar da Terezinha.
Fui ao enterro do Dinaldo, devia isso a ele. O corpo foi achado num matagal. Dona Josefa e eu éramos os únicos no cemitério. Ela me olhou o tempo todo, desconfiada. Saiu primeiro do que eu, antes mesmo de taparem o buraco.
Mariluce queria saber da Jurema. Mas isso é uma outra estória.
Ilustração: Murilo Martins
Isso é tudo pessoal...
Um comentário:
Boa narrativa e boa ambientação. O subúrbio dá muito pano p/ manga. Ele também é minha praia. Muito digno José Silva acompanhar o enterro de Dinaldo. Será que José se viu na pele de Dinaldo ou foi somente uma inquietação profissional? É preferível comer um bucho sozinho do que dividir um filé mignom com geral, já dizia o trovador suburbano.
abraço
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