sábado, 11 de abril de 2009

OS SEGREDOS DO FINO

Segredos do passado.
Uma investigação e
duas revelações


- O sujeito já nasce mal intencionado e não adianta querer modificar, que não tem jeito. Lá na escola, há muito tempo, um professor dizia com todas as verdades na voz: “o homem é um produto do meio”. E é mesmo. Já sai da barriga da mãe prontinho. É só esperar uns dez anos que o cara já mostra ao que veio. Agora, que é triste é. Veja esse menino, esse num tem nem dez anos e aí, perdido, sem futuro. Ah, meu Deus...
O Fino falava com um jeito compungido, como nunca vi, olhando o garoto sendo levado pela polícia. O menino tentou ficar com a carteira do dono da loja de loteria, mas o sujeito não concordou.

- Sabe Silva, - voltou a falar o melhor garçom de Brás de Pina, encostado na porta do bar, secando interminavelmente as mãos no seu pano de prato preso à calça, - nunca falei isso pra ninguém. Tenho uma filha, que hoje tem vinte anos. A mãe me deixou logo que ela nasceu e sumiu no mundo. Nunca tive notícias e vou te dizer uma coisa: tem vinte anos que penso nela todos os dias. - Fez uma longa pausa e escondeu a emoção debaixo do pano que passou pelo rosto. - Quando vejo uma cena dessas aí, me dói na alma e penso na menina. Dava tudo e mais um pouco pra saber dela. Pelo menos saber.
Olhou pra mim e não tive dúvidas no que estava pensando: “Você não é detetive? Acha a garota”. Sustentei o olhar do Fino e comentei: “É foda”.
Bebi o resto da caipirinha e sai dando um tapinha nas costas do amigo. Andei um pouco pelas ruas quentes do bairro, fazendo o tempo passar para ir encontrar Mariluce que àquela hora, meio dia, provavelmente estava acordando, depois da noite passada na quadra da escola de samba. Mas eu já estava contaminado pela dor do Fino. Sem querer já planejava a busca pela filha dele. Ia precisar de informações, mas não queria colocar minhoca na cabeça do cara. Vai que não encontro, ou que aconteceu alguma coisa do tipo: se mandou com um gringo, sofreu um acidente, sei lá. É foda!
Depois de passar na casa da Mariluce para dar um aperto nela, ainda na cama, voltei até o bar e falei com o Xará. Ele sabia de algumas coisas, poucas coisas:
- Sei que o Fino é aí do interior do estado, acho que é de São Fidélis. A mulher se mandou com o Delegado, num dava nem pra ir atrás.
Sabia também o ano e o primeiro nome da mulher. Pedi pra não dizer nada ao Fino e voltei para a casa da minha rainha. Pensava lá com o meu cérebro: “encontrar uma moça de vinte anos e dizer pra ela, oi sou seu pai, é um negócio muito esquisito. E se ela estiver muito bem de vida, casada? Ou não, se estiver mal, envolvida com algum bandido. Tudo era possível”. Conclusão da conversa comigo mesmo: ia achar a moça e ver qual era a situação, depois decidia se contava ou não aos dois.
Não foi difícil pesquisar quem era o delegado na cidade naquele ano. Descobri também que foi transferido para outra cidade e que se aposentou há cinco anos e morava no subúrbio. Até aí tudo bem. Fácil. Liguei pro cara:
- Dr. Celso, quem fala é o Silva. Sou amigo da família da sua esposa, dona Selma. Queria notícias dela.

Os aposentados em geral, e aqueles aposentados que durante muito tempo mandavam nos outros, em particular, são sujeitos carentes. Passaram a vida toda dando ordens e sendo bajulados, e agora o que mais querem é mostrar que estão vivos. Contou que Selma trabalhava como secretária de um médico na zona sul e só voltava à noite. Sobre a filha dele, ou do Fino, contou que estava se preparando para a faculdade de medicina, e estava viajando no feriado. Disse que eu podia visitá-los quando quisesse, passando o endereço. Perguntou qual o parentesco.
- Sou na verdade primo da cunhada do irmão mais novo da Selma.
Enquanto ele fazia contas, agradeci e me despedi. Então o Fino, o nosso querido garçom tinha uma filha que ia ser médica. Minha vontade era correr e contar a ele e brindar com a sua famosa caipirinha de lima. Mas a tal da prudência segurou a minha onda.
Fui passear no endereço. Como de praxe procurei um bar, o mais próximo e como não tinha lima, bebi uma de limão mesmo. Ruim, mas fazer o que? Seu Gaspar além de dono do boteco era presidente de honra da associação de moradores, com muito orgulho. Conhecia todo mundo.
- Parente da Selma, então é dos nossos. O Celso saiu daqui agorinha.
- Estive com ele. Estou esperando a Selma voltar...
- Sabe amigo. Qual a sua graça, mesmo?
- Silva, Zé Silva.
- Fui amigo do avô do Celso, do pai e claro do delegado. O nosso eterno delegado. Vou lhe contar, - aproximou botando a barrigona no balcão e buscando aquela intimidade necessária aos segredos que já nasceram públicos, - graças ao Celso esse é o lugar mais tranqüilo pra viver. Bandido aqui não se cria. Vacilou, ó!
Fez o gesto do dedo indicativo passando pela garganta e riu com gosto. Recado dado e recebido.

- E a filha deles?, quase médica... – Exagerei mudando de assunto.
- A menina vai longe, puxou o pai, sabe fazer as coisas.
Mais tarde identifiquei a Selma com a ajuda do seu Gaspar. Fiz a abordagem antes que ela entrasse em casa.
- Aí meu Deus, o Olindo. Depois de tantos anos. – Pareceu chocada, e eu também ao descobrir o verdadeiro nome do Fino.
- Ele só quer notícias da filha, saber se está bem. – Argumentei para acalmá-la.
- Moço, eu vou lhe contar toda a verdade, mas não diz pro Olindo que me encontrou não, pelo amor de Deus. Para o bem dele.
Naquele dia, mais tarde, mal consegui conversar com o Fino. Olhava pra ele e pensava: “É melhor que ele pense na filha que nunca mais viu e imagine coisas, do que saber que na verdade nunca foi o pai daquele bebê”.
Os segredos do Fino vão morrer comigo.
E espero que vocês sejam discretos.

Ilustrações: Murilo Martins

Isso é tudo pessoal...

Nenhum comentário: