Conheci Juçara aqui mesmo, no Rio de
Janeiro. Mora ali entre os bairros Catete e Glória, há quase vinte anos, onde
gerencia uma pensão para “moças”, com mão de ferro. Ao conhecê-la e pedir uma
entrevista, inevitavelmente tive que conhecer o Washington que é, vamos dizer
assim, o coordenador da pensão e o agenciador das“meninas”, também conhecido
pelo jargão de cafetão. Sobre ele e suas ações, falaremos mais adiante.
Juçara
morava em Vitória, no Espírito Santo. Vem de uma família grande, pai, mãe, três
irmãos mais velhos, uma moça e dois rapazes. Abaixo, mais três meninas. Seu pai
trabalhava no porto, Gerente Administrativo, com salário justo, no limite para
manter os filhos na escola, comer direitinho, comprar roupas e calçados, enfim,
aos trancos e barrancos, dava para manter a família no padrão respeitável. A
mãe, com sete filhos, não tinha como trabalhar fora, cuidava da casa e ajudava
nas despesas lavando e passando roupas para os vizinhos mais abastados.
É Juçara quem conta sua história, e
os motivos que a fizeram vir parar no Rio de Janeiro:
“O sonho do meu pai era formar as
filhas como professoras e arrumar bom casamento para cada uma das cinco, com
homens trabalhadores, responsáveis e saudáveis, o mais cedo possível. Para os
dois meninos, que eram tratados como investimento, não dizia isso assim pra
todo mundo, mas nós sabíamos e víamos a diferença, tratou de empregá-los no
porto, assim que atingiram a idade mínima.
Nós as
moças, todas sadias e bonitas, modéstia à parte, casamos com naturalidade, umas
mais cedo outras um pouco além do esperado, mas todas nós encontramos homens
interessados em formar família. Inclusive eu, com vinte e cinco anos, já
formada professora, mas sem conseguir emprego. Pulei a cerimônia de casamento e
foi morar com um pescador que conheci em um luau, em noite de verão numa praia
perto de Guarapari.
Naquela
noite mesmo fiquei grávida. Pra minha sorte o pescador, lindo e maravilhoso,
aceitou que eu e o nosso futuro filho fossemos morar com ele em uma casa
descente à beira da praia. Meus pais se mostraram compreensivos, um problema a
menos a ser resolvido e não havia porque criar dificuldades. Mas logo no
terceiro mês a gravidez foi interrompida por causas naturais. Nunca soubemos o
verdadeiro motivo; e foi aí que começou meu inferno na terra. O pescador, meu
marido, não se conformou. O homem foi tomado por atitudes insanas, tornou-se
arredio, parecia ter nojo de mim. Fazia acusações, pra quem quisesse ouvir, de
que eu tinha perdido o neném de propósito, de me juntar a ele apenas pra ter um
homem e ficar de safadeza enquanto ele trabalhava.
Ainda
assim, apesar dos escândalos que aprontava me esforcei para manter o casal
unido, ouvia os absurdos que ele dizia e tentava conciliar, demonstrar carinho,
mas não adiantava. Suportei a indiferença, as ofensas, por mais de um ano. Ele
então passou a dormir constantemente fora de casa e quando estava em casa não
falava comigo. Fui pedir ajuda aos meus pais, mas meu pai passava um período
difícil, estava por um fio no emprego, tinha se envolvido lá, sem saber da
gravidade do que fazia, em uma greve que paralisou as atividades no Porto por
dois meses e gerou um grande prejuízo. Assim que me queixei a ele sobre as
atitudes do meu marido, mandou que eu mesma resolvesse, disse que já não tinha
nada a ver com a minha vida.
O tempo
passou e eu, cheia de saúde, bonita e por tanto tempo intocada pelo marido, era
sempre muito paquerada pelos vizinhos e homens com quem esbarrava no dia a dia.
Um em especial, outro pescador, fez a corte com todas as armadilhas que fisgam
uma mulher carente. Bastou um encontro, em uma noite quente à beira mar, apenas
um encontro para me apaixonar perdidamente. O sujeito fez todas as minhas
vontades por algum tempo, e ao me ver inteiramente entregue aos seus encantos
abriu o jogo com o meu marido, que na verdade pegava a mulher dele. Foi tudo
por vingança.
No meio
da crise, tive esperança de que com o acontecido, meu pescador voltasse pra
casa. Mas para aumentar meu desespero o homem se voltou ainda mais contra mim.
Me culpou por ser chamado de corno e jurou que não ficaria assim. Sobre o outro
pescador, o que eu namorei, disse que ele agiu como homem seduzido por uma
vagabunda.
Uma
noite, duas ou três semanas depois que ele ficou sabendo da história, eu dormia
enrolada em um cobertor, chovia muito e ventava frio. Estava sozinha em casa,
como sempre sem saber onde estava meu marido, que ainda aparecia em casa de vez
em quando. Acordei com um cheiro forte e logo soube que era gasolina,
imediatamente a coberta virou uma bola de fogo. Consegui pular da cama, a
camiseta que eu vestia se transformou em labaredas. Não pensei em nada mais que
não fosse sobreviver. Me joguei contra a janela com tanta força que ela quebrou
e caí do lado de fora. Uma vizinha ouviu o barulho e saiu para ver o que era, e
disse depois que só viu uma tocha humana rolando no chão. A grande sorte foi a
lama ao lado da casa que ajudou a apagar o fogo. Fui levada ao hospital onde
fiquei por seis meses, entre a vida e a morte. Meu cabelo queimou todinho e
parte do rosto e quase toda as costas ficou em carne viva”.
Durante
esse tempo, Juçara procurou sensibilizar os pais, mas a ameaça de desemprego se
cumpriu e ela encontrou em seu pai um homem atormentado, que deixou claro não
acreditar em sua história. Aquilo não passara de alguma farra que fizera com
homens e bebidas.
Ao
receber alta médica, procurou a polícia. Na primeira visita à delegacia ouviu
do delegado: “Minha filha, não tem como provar nada contra o cara. É um
trabalhador sem antecedentes criminais. Aceite um conselho, esqueça esta
bobagem e cuida pra que não aconteça mais. É só levar uma vida direita.
“Naquele
dia, continuou Juçara, entendi que não poderia mais ficar ali. Estava sozinha
contra tudo e todos. Tinha uma cicatriz enorme nas costas e maior ainda na
alma, além da vergonha e de ser chamada de vagabunda. Juntei o pouco que sobrou
e botei o pé na estrada”.
Fez uma
pausa para mostrar a cicatriz nas costas e na nuca. Uma couraça de pele
endurecida em formas medonhas e ainda doloridas.
“Cheguei
aqui, disse concluindo, e Deus me ajudou a encontrar casa, comida e trabalho. E
aqui estamos nós...”
Falei ainda com mais
algumas das moças e as histórias são bastante parecidas na dor, no abandono, no
desespero e na falta informação. Duas dessas histórias vou recontar aqui. Uma
contada pela própria vítima que sobreviveu e luta contra o trauma que se fixou
como uma cicatriz indelével na memória, e a outra contada por uma amiga, pois
esta vítima não teve a mesma “sorte”, nem outra chance.
Por hoje é só
Um comentário:
Simas, belo trabalo! Há tantas Juçaras por aí precisando de voz.
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