quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Aqui estamos nós...3. A historia de Juçara.

                                             foto copiada da internet - sem crédito.


Conheci Juçara aqui mesmo, no Rio de Janeiro. Mora ali entre os bairros Catete e Glória, há quase vinte anos, onde gerencia uma pensão para “moças”, com mão de ferro. Ao conhecê-la e pedir uma entrevista, inevitavelmente tive que conhecer o Washington que é, vamos dizer assim, o coordenador da pensão e o agenciador das“meninas”, também conhecido pelo jargão de cafetão. Sobre ele e suas ações, falaremos mais adiante.
     Juçara morava em Vitória, no Espírito Santo. Vem de uma família grande, pai, mãe, três irmãos mais velhos, uma moça e dois rapazes. Abaixo, mais três meninas. Seu pai trabalhava no porto, Gerente Administrativo, com salário justo, no limite para manter os filhos na escola, comer direitinho, comprar roupas e calçados, enfim, aos trancos e barrancos, dava para manter a família no padrão respeitável. A mãe, com sete filhos, não tinha como trabalhar fora, cuidava da casa e ajudava nas despesas lavando e passando roupas para os vizinhos mais abastados.
É Juçara quem conta sua história, e os motivos que a fizeram vir parar no Rio de Janeiro:
“O sonho do meu pai era formar as filhas como professoras e arrumar bom casamento para cada uma das cinco, com homens trabalhadores, responsáveis e saudáveis, o mais cedo possível. Para os dois meninos, que eram tratados como investimento, não dizia isso assim pra todo mundo, mas nós sabíamos e víamos a diferença, tratou de empregá-los no porto, assim que atingiram a idade mínima.
     Nós as moças, todas sadias e bonitas, modéstia à parte, casamos com naturalidade, umas mais cedo outras um pouco além do esperado, mas todas nós encontramos homens interessados em formar família. Inclusive eu, com vinte e cinco anos, já formada professora, mas sem conseguir emprego. Pulei a cerimônia de casamento e foi morar com um pescador que conheci em um luau, em noite de verão numa praia perto de Guarapari.
     Naquela noite mesmo fiquei grávida. Pra minha sorte o pescador, lindo e maravilhoso, aceitou que eu e o nosso futuro filho fossemos morar com ele em uma casa descente à beira da praia. Meus pais se mostraram compreensivos, um problema a menos a ser resolvido e não havia porque criar dificuldades. Mas logo no terceiro mês a gravidez foi interrompida por causas naturais. Nunca soubemos o verdadeiro motivo; e foi aí que começou meu inferno na terra. O pescador, meu marido, não se conformou. O homem foi tomado por atitudes insanas, tornou-se arredio, parecia ter nojo de mim. Fazia acusações, pra quem quisesse ouvir, de que eu tinha perdido o neném de propósito, de me juntar a ele apenas pra ter um homem e ficar de safadeza enquanto ele trabalhava.
     Ainda assim, apesar dos escândalos que aprontava me esforcei para manter o casal unido, ouvia os absurdos que ele dizia e tentava conciliar, demonstrar carinho, mas não adiantava. Suportei a indiferença, as ofensas, por mais de um ano. Ele então passou a dormir constantemente fora de casa e quando estava em casa não falava comigo. Fui pedir ajuda aos meus pais, mas meu pai passava um período difícil, estava por um fio no emprego, tinha se envolvido lá, sem saber da gravidade do que fazia, em uma greve que paralisou as atividades no Porto por dois meses e gerou um grande prejuízo. Assim que me queixei a ele sobre as atitudes do meu marido, mandou que eu mesma resolvesse, disse que já não tinha nada a ver com a minha vida.
     O tempo passou e eu, cheia de saúde, bonita e por tanto tempo intocada pelo marido, era sempre muito paquerada pelos vizinhos e homens com quem esbarrava no dia a dia. Um em especial, outro pescador, fez a corte com todas as armadilhas que fisgam uma mulher carente. Bastou um encontro, em uma noite quente à beira mar, apenas um encontro para me apaixonar perdidamente. O sujeito fez todas as minhas vontades por algum tempo, e ao me ver inteiramente entregue aos seus encantos abriu o jogo com o meu marido, que na verdade pegava a mulher dele. Foi tudo por vingança.
     No meio da crise, tive esperança de que com o acontecido, meu pescador voltasse pra casa. Mas para aumentar meu desespero o homem se voltou ainda mais contra mim. Me culpou por ser chamado de corno e jurou que não ficaria assim. Sobre o outro pescador, o que eu namorei, disse que ele agiu como homem seduzido por uma vagabunda.
     Uma noite, duas ou três semanas depois que ele ficou sabendo da história, eu dormia enrolada em um cobertor, chovia muito e ventava frio. Estava sozinha em casa, como sempre sem saber onde estava meu marido, que ainda aparecia em casa de vez em quando. Acordei com um cheiro forte e logo soube que era gasolina, imediatamente a coberta virou uma bola de fogo. Consegui pular da cama, a camiseta que eu vestia se transformou em labaredas. Não pensei em nada mais que não fosse sobreviver. Me joguei contra a janela com tanta força que ela quebrou e caí do lado de fora. Uma vizinha ouviu o barulho e saiu para ver o que era, e disse depois que só viu uma tocha humana rolando no chão. A grande sorte foi a lama ao lado da casa que ajudou a apagar o fogo. Fui levada ao hospital onde fiquei por seis meses, entre a vida e a morte. Meu cabelo queimou todinho e parte do rosto e quase toda as costas ficou em carne viva”.
     Durante esse tempo, Juçara procurou sensibilizar os pais, mas a ameaça de desemprego se cumpriu e ela encontrou em seu pai um homem atormentado, que deixou claro não acreditar em sua história. Aquilo não passara de alguma farra que fizera com homens e bebidas.
     Ao receber alta médica, procurou a polícia. Na primeira visita à delegacia ouviu do delegado: “Minha filha, não tem como provar nada contra o cara. É um trabalhador sem antecedentes criminais. Aceite um conselho, esqueça esta bobagem e cuida pra que não aconteça mais. É só levar uma vida direita.
     “Naquele dia, continuou Juçara, entendi que não poderia mais ficar ali. Estava sozinha contra tudo e todos. Tinha uma cicatriz enorme nas costas e maior ainda na alma, além da vergonha e de ser chamada de vagabunda. Juntei o pouco que sobrou e botei o pé na estrada”.
     Fez uma pausa para mostrar a cicatriz nas costas e na nuca. Uma couraça de pele endurecida em formas medonhas e ainda doloridas.
     “Cheguei aqui, disse concluindo, e Deus me ajudou a encontrar casa, comida e trabalho. E aqui estamos nós...”
          Falei ainda com mais algumas das moças e as histórias são bastante parecidas na dor, no abandono, no desespero e na falta informação. Duas dessas histórias vou recontar aqui. Uma contada pela própria vítima que sobreviveu e luta contra o trauma que se fixou como uma cicatriz indelével na memória, e a outra contada por uma amiga, pois esta vítima não teve a mesma “sorte”, nem outra chance.
Por hoje é só

Um comentário:

vidal disse...

Simas, belo trabalo! Há tantas Juçaras por aí precisando de voz.