sábado, 1 de outubro de 2011

Aqui estamos nós...5 - Violência contra a mulher. Michely, por Ane.


                                                      Ilustração da internet- sem crédito
Hoje quem conta a história é Ane. Aconteceu com sua primeira melhor amiga, de quem nunca soube o verdadeiro nome, por dois motivos simples: “... porque depois que se entra nessa vida, a verdadeira identidade não existe mais. E também ninguém se interessa, de verdade, quem a gente já foi.”
     A amiga, Michely, um nome tão comum como a presença delas nas esquinas escuras do país, mais nova do que ela, tão inocente e machucada quanto ela. Ela conta:
     Michely chegou à pensão poucos dias antes de mim. Do mesmo jeito que eu. Linda, muito meiga e com corpo e cara de adolescente. Tudo o que possuía guardava em um pé de meia, segundo ela feita pela avó. Um dia mostrou o que tinha: a certidão de nascimento, uma foto da casa com pessoas que não se via direito, em pé, na porta, e uma carteira de couro, muito velha, onde guardava o dinheiro que conseguia. Ficamos amigas, por gostarmos uma da outra, mas também por falta de opções.
     Uma noite, no escuro do quarto perguntei por que ela estava ali. Sabia que a história não seria muito diferente da minha, mas também sei como é bom poder botar pra fora, desabafar. E ela contou como se contasse uma daquelas estórias que os adultos contam pra criancinhas dormirem.
Sou filha única, pai e mãe agricultores, num lugarejo no interior do maranhão. Um lugar tão seco que a pele da gente quebrava. Minha mãe era doente dos nervos e depois que eu nasci piorou muito, meu pai dizia. Muitas vezes a gente passava um tempão sem nada pra comer, a não ser uma farinha misturada com um tipo de feijão, sem gosto nenhum. Assim que peguei corpo meu pai disse eu podia ajudar na roça e deitar com ele. Com 12 anos ele me levou no fundo da roça e até meus 16 anos me usava sempre.
Um dia, minha mãe, não sei como, me deu essa carteira aí com todo o dinheiro guardado e me disse: vai e não volta e nem olha pra trás. Faz sua vida.
Depois de muita carona e muitos homens, cheguei aqui. E aqui estamos nós...
E Ane continuou: um dia ela escreveu pra mãe e depois recebeu a resposta. Ficou toda feliz, disse que o pai tinha sumido no mundo e ela podia voltar. Só precisava arranjar mais dinheiro.
Nesse ponto Ane chorou, custou a se recuperar. A culpa foi minha, mas eu não sabia. Se soubesse...
O Washington, que arrumava e levava a gente para os clientes, disse que ia ter uma festa e eu seria o presente do aniversariante. Era uma grana como nunca tinha visto. Chamei a Michely e ofereci meu lugar.
O aniversariante era filho de um traficante e tinha uma guerra com outro grupo. No dia da festa, pegaram o garoto e levaram a Michely junto. Nunca mais vi. Muito tempo depois, por acaso, fiquei sabendo que queimaram o corpo e enterraram por aí.
Quando disse que a culpa não fora dela, que fizera na melhor das intenções, ela disse:
Pode escrever aí: vou vingar a Michely.
Vendo a expressão determinada e o brilho em seus olhos, pensei: adoraria que isso acontecesse.

Afinal a lei de talião é um sentimento intrínseco ao ser humano.

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