Ilustração da internet- sem crédito
Hoje quem conta a história é Ane. Aconteceu com sua primeira
melhor amiga, de quem nunca soube o verdadeiro nome, por dois motivos simples: “...
porque depois que se entra nessa vida, a verdadeira identidade não existe mais.
E também ninguém se interessa, de verdade, quem a gente já foi.”
A amiga, Michely, um
nome tão comum como a presença delas nas esquinas escuras do país, mais nova do
que ela, tão inocente e machucada quanto ela. Ela conta:
Michely chegou à pensão
poucos dias antes de mim. Do mesmo jeito que eu. Linda, muito meiga e com corpo
e cara de adolescente. Tudo o que possuía guardava em um pé de meia, segundo
ela feita pela avó. Um dia mostrou o que tinha: a certidão de nascimento, uma
foto da casa com pessoas que não se via direito, em pé, na porta, e uma
carteira de couro, muito velha, onde guardava o dinheiro que conseguia. Ficamos
amigas, por gostarmos uma da outra, mas também por falta de opções.
Uma noite, no escuro
do quarto perguntei por que ela estava ali. Sabia que a história não seria
muito diferente da minha, mas também sei como é bom poder botar pra fora,
desabafar. E ela contou como se contasse uma daquelas estórias que os adultos contam
pra criancinhas dormirem.
Sou filha única, pai e mãe agricultores,
num lugarejo no interior do maranhão. Um lugar tão seco que a pele da gente
quebrava. Minha mãe era doente dos nervos e depois que eu nasci piorou muito,
meu pai dizia. Muitas vezes a gente passava um tempão sem nada pra comer, a não
ser uma farinha misturada com um tipo de feijão, sem gosto nenhum. Assim que
peguei corpo meu pai disse eu podia ajudar na roça e deitar com ele. Com 12
anos ele me levou no fundo da roça e até meus 16 anos me usava sempre.
Um dia, minha mãe, não sei como, me
deu essa carteira aí com todo o dinheiro guardado e me disse: vai e não volta e
nem olha pra trás. Faz sua vida.
Depois de muita carona e muitos
homens, cheguei aqui. E aqui estamos nós...
E Ane continuou: um dia ela escreveu
pra mãe e depois recebeu a resposta. Ficou toda feliz, disse que o pai tinha
sumido no mundo e ela podia voltar. Só precisava arranjar mais dinheiro.
Nesse ponto Ane chorou, custou a se
recuperar. A culpa foi minha, mas eu não sabia. Se soubesse...
O Washington, que arrumava e levava
a gente para os clientes, disse que ia ter uma festa e eu seria o presente do
aniversariante. Era uma grana como nunca tinha visto. Chamei a Michely e
ofereci meu lugar.
O aniversariante era filho de um
traficante e tinha uma guerra com outro grupo. No dia da festa, pegaram o
garoto e levaram a Michely junto. Nunca mais vi. Muito tempo depois, por acaso,
fiquei sabendo que queimaram o corpo e enterraram por aí.
Quando disse que a culpa não fora
dela, que fizera na melhor das intenções, ela disse:
Pode escrever aí: vou vingar a
Michely.
Vendo a expressão determinada e o
brilho em seus olhos, pensei: adoraria que isso acontecesse.
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