O texto a
seguir é a abertura do segundo volume (Livro 2) da trilogia “Aqui estamos
nós...”, em fase de conclusão, a ser editada ainda este ano pela Editora
Subtítulo. É de autoria da personagem Joele Rocha, jornalista e sócia da
Agência Rian.
Publico em
homenagem a semana em que se comemora o Dia Internacional da Mulher: 8 de
março.
São tantas as Marias, mais do que
se pode contar, muito mais do que se consegue nomear, acrescentar sobrenome,
dar uma feição, um perfil. Acabam todas iguais, em estatísticas, números e
listas. A maioria nos prontuários dos hospitais, centenas nos obituários, e
absolutamente todas com suas vidas destroçadas.
Quase todas...
E quantas dessas Marias você
conhece?
Quantas vezes ouviu falar, ou leu
sobre elas?
No mínimo franziu o cenho enojado
pelo relato.
Pelo menos uma vez já se
surpreendeu ao se dar conta que bem perto, ali na casa do vizinho, na família
de um parente próximo, no apartamento chique do grande amigo, no lar do seu
chefe, na comunidade onde mora a sua empregada doméstica, em todos estes
lugares mora uma Maria.
São muitas as Marias, são muitas as
histórias.
Esta seria mais uma história como
as outras, se a Maria da vez não fosse quem é.
Mas quem é? Uma guerreira? Uma
super mulher? Daquelas conhecidas que estão sempre em evidência? Mulher pobre,
do povo, que por acaso e sorte foi pinçada pela mídia para uma semana de
exposição e sensacionalismo? Quem é afinal?
Esta Maria é cearense de Fortaleza,
classe média, farmacêutica bioquímica, entusiasmada pela profissão, uma mulher,
como as outras, cheia de vida, desejos e sonhos. Um deles foi fazer Mestrado na
USP em São Paulo. Para bancar a aspiração batalhou em dois empregos enquanto se
aprofundava nos estudos. Dia e noite sem trégua?, o que importava se buscava
seu nobre objetivo?
Lá conheceu um estudante de
economia. Um rapaz bonito, sedutor, o tipo exato que nós mulheres procuramos
para que nos tirem da torre, onde, apesar de tudo ainda nos prendemos com
grades de esperança.
Os sonhos se realizavam: estudos,
trabalhos e finalmente um companheiro para dividir a vida, para projetar um
futuro, viver com um pouco de prazer.
A alma feminina acolheu e abriu o
caminho para o parceiro. Bancou o futuro dele, pensando neles. Protegeu, amou,
se doou. Trouxe à família seu marido, o pai de suas três filhas. Foi recebido
como o homem escolhido para conviver no seio desta família, estruturada e
unida.
Mas assim como se realizou, o sonho
se decompôs.
Estabilizado, financeiramente
estável e com o moral alto, o seu homem revelou o verdadeiro caráter. Em pouco
tempo arrastou toda a família para o martírio da violência física, moral e
psicológica. Maus-tratos, brutalidade, medo e crianças dilaceradas pelo terror.
Uma noite, a Maria que ainda tinha
esperanças de reencontrar o homem, gentil e amoroso, a quem oferecera muito mais
do que o coração, acordou com um tiro nas costas. Assim mesmo sobreviveu
paraplégica para sempre, à duras penas, porque, igual a todas, tinha um destino
a cumprir.
Começava ali, para esta Maria outra
vida, não uma nova, mas outra vida,
outra guerra, em que as batalhas recrudesceriam. Sua luta não seria por
vingança, mas pelo futuro das filhas, por uma causa, por mais uma revolução
feminina. Para atenuar o sofrimento de tantas Marias que ainda existem por aí.
Contra as estatísticas oficiais,
contra a cultura ancestral, o medo e a vergonha, as humilhações e o estigma,
esta Maria se apresentou à sociedade, ofereceu nome, sobrenome e um rosto, não
a outra face, mas a cara com a qual enfrentaria a cultura machista, a
burocracia viciada, o descaso e até, por incrível que possa parecer, a
conivência, ou ainda a indiferença de autoridades que deveriam zelar pela
justiça.
Esta incansável Maria não é mais do
que as outras. Se pudesse escolher jamais se tornaria quem se tornou. Agora é
um nome que salva, que redime e possibilita a milhares de mulheres reassumirem
a própria vida, com a palavra que jamais deveria ser preciso reivindicar:
DIGNIDADE.
Após a longa e sofrida batalha,
cercada de completos absurdos, como o que manteve em liberdade o seu agressor,
Maria conquistou muito mais do que uma vitória pessoal. Em 7 de agosto de 2006
foi sancionada a Lei n°11.340, que recebeu o nome de Lei Maria da Penha. Dentre
várias mudanças promovidas pela lei está o aumento no rigor das punições das
agressões contra a mulher quando ocorridas no âmbito doméstico ou familiar.
A Lei entrou em vigor no dia 22 de
setembro de 2006. Vinte e três anos após o atentado sofrido por Maria da Penha
Maia Fernandes.
A despeito disso, nos últimos anos,
foi registrada nas delegacias das mulheres, no Brasil, a média de mais de
quatrocentas mil queixas de mulheres assediadas, molestadas, espancadas, sem
contar as milhares que ainda não tem coragem de denunciar e as dezenas
assassinadas pelos companheiros ou ex-companheiros.
Muito ainda precisa ser feito na
base da sociedade, na educação de nossas crianças, no cotidiano das relações
entre os sexos. Mas aí está um exemplo de coragem de uma simples Maria, esta
sim, uma heroína de verdade, de carne e osso que, como tantas, esteve frente a
frente com a face grotesca do machismo, uma doença na qual a sociedade precisa
dar um BASTA!
Imagem da internet - sem crédito
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